O martírio de Camille

Juliette Binoche entrega-se ao ascetismo de Bruno Dumont; o resultado é capaz de ser o mais conciso filme do realizador.

Aviso prévio ao espectador: afaste da ideia, caso se recorde dele, o filme biográfico sobre a escultora Camille Claudel que Isabelle Adjani interpretou em 1988. O que o francês Bruno Dumont, antigo professor de filosofia, faz do trágico internamento de Camille, que passou 40 anos fechada no asilo psiquiátrico onde acabaria por morrer em 1943, é uma meditação sobre os caminhos da fé e do martírio na linhagem dos seus anteriores filmes estreados em Portugal, "Hadewijch" (2009) e "Fora Satanás" (2011). E nem a presença de uma actriz “de renome” - Juliette Binoche - desvia o cineasta do seu percurso austero e asceta; parece, antes, reforçá-lo e dar-lhe um novo élan.


Concentrando-se nos poucos dias que antecedem uma das raras visitas que Camille recebia do seu irmão, Paul, Dumont filma Binoche como uma mártir do patriarcado do século XIX numa altura em que o mundo moderno começava a surgir. Encerrada num asilo para “alienados” - ler, portadores de deficiência - com os quais as suas obsessões mentais nada tinham a ver, impossibilitada de criar e remoendo os seus complexos de perseguição, Camille intui que apenas Paul, também ele artista, pode compreender os êxtases transcendentes a que a arte e o amor a transportam. Mas os êxtases transcendentes de Paul são de ordem mística, enquanto Camille se sustenta com a simples força da vontade, com a esperança de sair do asilo degradado em que se encontra e retomar a carreira que insiste ter sido sabotada pelos homens que a encarceraram.

Dumont evita qualquer ilustração musical, funde a sua narrativa com o seu cenário de modo pictorial, e concentra tudo numa actriz à qual arranca qualquer traço de glamour, filmada em grandes planos sustentados quase até ao limite da vulnerabilidade. É aqui que se vê como o cinema do realizador explora um quadro de referências específico e muito diferente da maioria dos contemporâneos, na linhagem que liga Bresson e Dreyer (é inevitável pensar na Falconetti como Joana d''Arc). Binoche integra-se neste universo como se nunca tivesse feito outra coisa na vida, como um “instrumento” de grande sensibilidade colocado nas mãos de um virtuoso que dele retira sonoridades inalcançáveis por outros. O resultado é para nós o seu trabalho mais conciso e mais conseguido.

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