O fio da navalha

Já no finalzinho do filme, Nicole Kidman, tocada por uma banda-desenhada caseira sobre um viajante interdimensional, admite gostar da ideia de uma outra versão sua que, num universo paralelo, estará a divertir-se ou a fazer panquecas. Nesta realidade, contudo, ela vive “a versão triste de nós próprios” - porque O Outro Lado do Coração é a história de um casal suburbano que não consegue ultrapassar a morte trágica do filho ainda menino. A “toca do coelho” a que o título original se refere - “rabbit hole” - é então o luto prolongado pelo qual Becca e Howard têm de passar para encontrar um modo de viver com a dor.


John Cameron Mitchell (Hedwig e a Origem do Amor, 2001; Shortbus, 2006) evita a queda na sisudez lamecha e traz uma refrescante sobriedade e uma total ausência de rodriguinhos a um filme adulto e inteligente, que trai a espaços a sua origem teatral de jeu de massacre familiar mas contorna as suas limitações através de uma construção discreta mas inexorável em crescendo imperceptível e de um conjunto de actores atento que agarra o espectador. É uma adaptação inteligente, pelo próprio dramaturgo, da peça que valeu o Pulitzer de teatro a David Lindsay-Abaire em 2007, e Kidman (que produziu o filme) foi nomeada em 2011 para o Óscar pela sua interpretação no fio da navalha de uma mãe desesperada que perdeu a paciência para fachadas de falso conforto. O atraso de mais de dois anos com que este filme (bem mais interessante do que tantas outras coisas lançadas com pompa) chega às salas portuguesas, literalmente despejado sem aviso prévio e com um título nos antípodas da secura do tratamento, é apenas mais um sinal do absurdo em que a distribuição portuguesa se tornou.

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