A felicidade como acto de resistência

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Rita Carmo

Márcia decreta Casulo como um sítio para cantar e dançar sem que lhe controlem os movimentos. Oiça as canções do novo álbum.

Terá sido em 2007. Mas também pode ter acontecido em 2006. Ou até 2005. O ano é impreciso porque não importa assim tanto. O que interessa é que, por essa altura, Márcia Santos fizera um documentário sobre a irmã e estava ainda convencida de que o seu futuro seria gasto a desenterrar histórias como documentarista e a tentar pôr o mundo em confronto com as zonas gangrenadas de que habitualmente desvia o olhar. Foi para França, integrada no Programa Erasmus, e dedicou-se a planear e concretizar um outro filme sobre a vida severa da emigração portuguesa naquele país, sentindo-se investida de “uma missão social”. Terminou o vídeo, entregou-o na Faculdade de Belas Artes e deixou a poeira assentar. Com a passagem dos meses, começou a sentir que a sua “voz” estava mais nessoutro filme sobre a irmã, anterior, que à primeira lhe parecera “demasiado íntimo” mas que, no fim de contas, se revelava mais universal. “Percebi que o primeiro dizia mais de mim aos outros e que acabei por ser mais generosa ao revelar a minha família e a minha intimidade de uma forma tão despida”, conclui hoje.

Pode não ser óbvio, mas Casulo, o seu segundo álbum, tem tudo a ver com isto. É um disco sem a preocupação de passar uma mensagem, permanentemente atravessado pela maternidade que entretanto invadiu a vida da cantora, mas também cheio de frases soltas que se engancham numa vontade política de “dar ânimo e vontade às pessoas, fazê-las descansar, sossegar ou trazer mais luz”. Mas nada aqui é de interpretação inequívoca, nenhuma canção oferece a mira e o alvo, delegando no ouvinte apenas o disparo. Nada disso. “Eu não consigo falar de fora para dentro”, defende Márcia. “Tenho de falar de dentro para fora, já depois de mastigar as coisas”. E voltamos à ideia do início: Casulo alude directamente à sua recente condição de mãe, escreve-se na primeira pessoa, parte do íntimo e só depois se desprende rumo a terceiros.

E funciona. Peguemos no single Deixa-me Ir. Aquilo que na origem é uma canção de desesperança amorosa, de querer partir da influência de alguém, de cortar tristemente com uma relação, foi interpretado pelo realizador Miguel Gonçalves Mendes e passado a videoclip como “retrato de um dos momentos mais confrangedores e lamentáveis que se vive actualmente em toda a Europa, e sobretudo em Portugal”. A desistência vencida do outro pode, afinal, ler-se como a desistência de um lugar, de uma relação quebrada entre indivíduo e colectivo. Nos pontos de vista políticos, de resto, as visões dos dois coincidem. Márcia, simplesmente, não quer acrescentar ruído. “O problema hoje é que há palavras a mais, toda a gente acha que a liberdade de expressão é suficiente. Ajuda muito, mas a verdade é que toda a gente fala demais. Há muito comentário político e não serve de nada. As pessoas vão para a rua, como na manifestação de 2 de Março, e não houve reacção do governo, foi uma coisa praticamente ignorada”.

Atenção: ler apenas o que acima se diz. Márcia não critica manifestações que não geram reacção, mas sim a ausência de consequências. Ou seja: não tem paciência para o queixume, mas junta a sua voz quando as queixas se fazem com um propósito. Algures no meio, no entanto, encontrou uma forma de resistência que estende a cada canção de Casulo. Por isso, enquanto cidadã defende o protesto e recusa um “silêncio que permita um avanço ainda maior para um terreno invasivo”. Mas, ao mesmo tempo, recusa permitir a essa invasão um ascendente que comprometa a sua felicidade: “Esta governação não pode também poluir todos os meus momentos de qualidade. Há esta pressão da palavra horrorosa – crise – que nos está constantemente a empurrar para baixo. Acha-se que tem de se pactuar com essa palavra e já não se pode ser feliz porque pode estar alguém a ver. Esse é o mais atroz dos crimes que este governo está a fazer, a injectar-nos essa palavra como se cada português tivesse essa missão de ser miserável”. É nesse sentido que assume Casulo como um disco de resistência, reflexo de uma procura por paz que lhe permitisse viver com felicidade, sem recear hostilizar alguém sempre que não esconda as suas pequenas ou grandes alegrias. É isso, diz, que se ouve no final do tema de abertura, Decanto: “uma bateria toda torta”, sugerida na sua cabeça pelo som de livros a cair, tudo a desmoronar sem que, na verdade, os outros instrumentos pareçam dar-se conta disso. Nem tudo desmorona, afinal.

A dança liberta

Ao regressar de França, em 2009, Márcia começou a investir nas canções, acumulando-as em número suficiente para marcar um primeiro concerto no Maxime, em Lisboa. Nessa ocasião, quis tentar dividir os nervos com Samuel Úria, já figura de referência da constelação FlorCaveira. Ela, a sofrer com a ansiedade, “aos saltinhos atrás do pano”, e ele a oferecer-lhe palavras de incentivo e de confiança, a empurrá-la para o palco com as liberdades que se permitem a um quase desconhecido. A partir dessa noite, Úria passou a figurar na galeria de “pessoas favoritas” de Márcia, como ela lhes chama, com uma aura de personagem que aparece nos momentos certos para ajudar a assumir novos passos. Foi a esse momento do Maxime que a cantora quis que o seu convidado recuasse, ao juntar a sua voz no final de Menina, dizendo à menina que se faça mulher, que vá dançar, rasgar marasmos, virar do avesso enguiços, matar indecisões. “Essa dança há-de encontrar-se nas letras todas”, confessa. “Acho que a dança é mesmo a libertação quando há muitas coisas a prender-nos os movimentos”.

Uma dessas coisas capazes de prender movimentos foi o medo de que Casulo pudesse ser lançado como disco sem o ser verdadeiramente. Partido ao meio pelo nascimento da sua filha, o período de composição poderia resultar em duas metades não comunicantes, em canções que não se quisessem ouvir umas às outras, duas faces para outras tantas moedas que perderiam um centro gravitacional comum. A consequência poderia ser algum caos largado em cima de um álbum que não acabara de desenhar-se, um borrão sem nexo. “Senti imenso medo” – não lhe custa a admissão. “Mas também não queria ficar fechada no meu casulo, não queria guardá-lo só para mim, ficar o Verão todo recolhida”.

O perigo era ficar com mais um disco à espera de espaço e momento adequados. Como acontece com dois álbuns outros que tem parados. Um primeiro, a chamar-se Marítimo, mais próximo de uma expressão musical de raízes portuguesas (onde poderá entrar a sua interpretação de Até ao Verão, tema composto para o Desfado de Ana Moura); um outro, em sentido inverso, integralmente cantado em inglês. Este último, quando vier à tona, não deixará de carregar consigo uma certa provocação ao rótulo “menina que faz canções em português e com abordagem indie” que Márcia diz ter passado a ser a descrição oficial da sua música pela boca de terceiros. Ela não foge à questão principal: “É óbvio que corro o risco de vulgarizar as minhas canções. Mas, desde que me faça sentido, não vou deixar-me aprisionar. Não gosto de estar fechada em lado nenhum e gosto de me libertar de algumas amarras. E algumas estão na nossa cabeça e somos nós as que as fazemos porque achamos que temos de cumprir a imagem que nos vestiram. Por isso, tento fugir a algumas coisas de que estou farta e tento encontrar coisas que me surpreenderam noutros discos”.

Nos discos de Jim O’Rourke, por exemplo, descobriu há anos o som da pedal steel e desde então que procura forma de o trazer para as suas canções. Em Casulo, está por todo o lado, atravessa o disco de uma ponta à outra sem eclipsar tudo à volta, graças ao seu marido, Filipe Cunha Monteiro, e ajuda-a a procurar pausas para a voz, para também ela fugir à tentação de dizer demais. No disco anterior, a estrutura de canção exigia fazer-se notar e Márcia queria sobretudo cumprir a vontade de ter em cada tema um universo individual, distinto. Agora não, interessou-lhe mais a contemplação, conquistar espaço para os instrumentos, deixar que a voz se faça esperar e desejar, mais do que estar sempre em cena. Como acto artístico mas também de liberdade. Casulo – já o dissemos, não foi? – é um disco de resistência. Um disco em que, com alguma boa vontade, se ouve Márcia a sussurrar em fundo: aqui ninguém mexe. 
 

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