Identificação de uma mulher

Ao terceiro filme, com a ajuda de uma interpretação notável de Melvil Poupaud, o menino-prodígio canadiano Xavier Dolan prova finalmente que é um cineasta.

O “menino-prodígio” canadiano Xavier Dolan, antigo actor-criança do Quebeque hoje com 24 anos de idade, tornou-se numa pequena coqueluche do cinema de autor depois da sua revelação e consequente “apadrinhamento” pelo festival de Cannes, que programou as suas três longas-metragens.

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Mas só agora, ao terceiro filme, é que conseguimos finalmente sentir a existência de um verdadeiro cineasta mais do que um diletante em busca de um caminho: "Laurence para Sempre" é o filme em que Dolan cumpre as promessas da estreia "J'ai tué ma mère" (2009, inédita entre nós) e faz esquecer o pedantismo afectado do passo em falso "Amores Imaginários" (2010). É a prova de que existe aqui um cineasta talentoso, mesmo que ainda em estado de construção de uma identidade - o que não é nada dispiciendo, visto que Laurence para Sempre é um filme sobre alguém que resolve assumir a sua verdadeira identidade e reconstruir a sua vida e as suas relações sem recorrer a fachadas ou máscaras. Esse alguém é a personagem titular, Laurence, professor universitário que decide finalmente revelar-se como a mulher que sempre se sentiu, e cuja decisão de mudar de sexo irá ter consequências imprevisíveis.

Embora a personagem principal seja transsexual, este não é um filme sobre a sexualidade e seria um equívoco encerrá-lo nessa gaveta: o arco narrativo de "Laurence para Sempre" é a evolução da relação entre Laurence e Fred, a mulher da sua vida, e do modo como as expectativas pessoais e sociais vão progressivamente minando os seus sentimentos um pelo outro ao longo dos dez anos em que a história corre. Quase não há sexo naquela que é uma história de amor e de descoberta de si próprio; no fundo, uma metáfora dos tempos que mudam e das pessoas que mudam, externa mesmo que não internamente, embrulhada no estilo pop e ainda pontualmente amaneirado do realizador canadiano, mas aqui mais próximo da maturidade de "J'ai tué ma mère" do que da frivolidade afectada de Amores Imaginários. Como se a própria ambição do filme - um épico de época com quase três horas de duração e ambientado na década de 1990 sobre o arco de uma relação amorosa - tivesse forçado Dolan a “crescer”, a concentrar-se no essencial em detrimento do acessório (mesmo que haja alguns detalhes que, embora criem ambiente e contexto importantes, narrativamente pouco ou nada adiantam e “estendem” o filme um pouco para lá do ideal).

E, para isso, muito contribui Melvil Poupaud, que substituiu Louis Garrel no papel principal à última hora. O actor francês, numa interpretação de antologia, entrega-se de alma e coração a Laurence, atribui densidade e gravidade a esta história que, noutras mãos, poderia ter caído muito facilmente no panfleto ostensivo ou no ridículo insuspeito. Em vez disso, temos um encontro justíssimo entre um realizador e um actor - não estamos a esquecer que há mais excelentes interpretações em "Laurence para Sempre", como Suzanne Clément (que mereceu justamente o prémio de interpretação em Un Certain Regard) ou Nathalie Baye, mas é a entrega de Poupaud que nos fica na memória ao fim de quase três horas de filme, num papel que ombreia ao lado da sua criação sublime em "O Tempo que Resta" (2005) de François Ozon como fulcral numa carreira por demais discreta. E se Laurence para Sempre não é ainda uma obra-prima, já está suficientemente próximo de ser um grande filme para provar que Xavier Dolan não é só um estilista afectado mas é um cineasta com coisas para dizer.

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