Samara Lubelski quer passar despercebida (não deixemos)

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Figura esquiva mas endeusada onde quer que rock e folk acolham a estranheza, visita Portugal para cinco datas. Traz consigo Wavelenght, delícia de folk psicadélica, antes de regressar à sua banda com Thurston Moore

Samara Lubelski tem uma aversão quase epidérmica à palavra "carreira". É como se alguém, de fora, lhe quisesse impor uma coerência de percurso de que não quer ouvir falar. Porque preocupar-se em ter um percurso de escolhas coerentes seria, em rigor, assassinar barbaramente a relação que tem com a música - que, nas suas mãos, é uma besta selvagem, em que qualquer assomo de previsibilidade é coisa para accionar um alerta vermelho. A "carreira" seria como uma gravidez indesejada: se lhe acontecesse, ou se aguentava à bronca e assumia as consequências de futuro, ou interrompia e tinha de repensar as suas opções.

Num certo sentido, é uma praticante convicta da auto-sabotagem, não dando hipóteses a si mesma de se tornar numa endeusada princesa do mundo indie. E tinha tudo para sê-lo. Basta escutar o seu último álbum a solo, Wavelength, para perceber o potencial de culto alargado mortinho por ser fecundado. Mas, a acontecer, isso seria um dano colateral e não sabemos como alteraria esta sua dispersão por tantos projectos quantos consiga encontrar. A sua discrição deve-se apenas a achar que "a música vem sempre primero". "Há uma grande diferença entre tocar e ter uma carreira. Tocar tem de vir sempre em primeiro. E se por causa disso a carreira não acontecer, não me importa, o que interessa é a música".

Samara Lubelski está nos antípodas das estrelas pop que têm um escritório de RP de porta fechada a inventar escandaleiras para alimentar com regularidade de relógio suíco as páginas de fait-divers da imprensa mundial. Passa despercebida e sabe-o: o foco não está em atrair atenção sobre o seu trabalho mas em conseguir levá-lo tão a fundo artisticamente quanto possível. Procurar visibilidade, no seu caso, equivale a uma perda de energia essencial para colocar ao dispor da música. Quando, fortuitamente, acontece essa visibilidade acrescida, tal deve-se ao facto de entre os seus admiradores haver gente como Thurston Moore, dos Sonic Youth, que a chamou enquanto violinista para a sua banda de Demolished Thoughts, assim como a integrou no seu novo projecto Chelsea Light Moving, com disco a editar em Março.

Desafio: adaptação

É comum dizer-se, aliás, que Samara é a música preferida dos músicos. Ela vê nisso um elogio. Possivelmente porque o seu grau de liberdade e de envolvimento nos projectos em que se move é algo que, para a grande maioria, cai com o tempo. Lubelski está quase onde começou, num ponto semelhante de entusiasmo e desprendimento, não dando mostras de qualquer preocupação adicional com contas de água e luz, hipotecas sobre a casa, filhos para mandar para a faculdade. "Cada projecto é diferente na forma como nos relacionamos com os outros e acho que esse é o meu desafio preferido - adaptar-me. É isso que faço e em que trabalho".

A maior constante do seu percurso é, portanto, a procura por experiências novas. É por isso que realça as relações musicais profundas com alguns músicos e a importância das relações pessoais. Essa é a sua escala de sucesso e satisfação pessoal.

A origem da atracção irresistível pelas colaborações talvez possa ser identificada no seu passado enquanto membro de orquestras clássicas de juventude. Mas, às tantas, trocou o turbilhão de Sagração da Primavera, de Stravinsky, no violino, as salas solenes e austeras, pelos clubes faiscantes do underground novaiorquino do início dos anos 90. "Havia uma cena musical muito intensa e eu ia a muitas coisas ainda adolescente. Conheci muita gente mais velha e fiz muitos contactos ao andar por esses clubes. Muita gente dizia ‘devíamos fazer uma banda' e quase toda essa gente estava envolvida em coisas criativas, andava na faculdade de artes, fazia filmes, era um ambiente muito excitante. Foi aí que comecei a minha primeira banda e a aprender a fazer música com outras pessoas. A música clássica é uma unidade muito coesa, muito unida e muito poderosa, mas há uma intimidade muito diferente em criar música com outras pessoas, especialmente música improvisada".

Foi aí que entraram em cena os Metabolismus, curso intensivo em improvisação e música exploratória, com os quais teve de reaprender a ouvir. A partir daí, os ouvidos passavam a estar atentos e a proporcionar-lhe respostas, algo que a música clássica também ajudou - "muito facilmente conseguia esgueirar-me para as cabeças dos outros". Mas estava sobretudo a aprender como ser parte de um todo e funcionar com esse todo mediante respostas individuais e não colectivas. Lentamente, foi aprendendo a ter uma relação não-fode-nem-sai-de-cima com a música clássica: não a deixa ir embora, pede-lhe recursos, mas também não quer nada com ela, exige distância.

Daí que, com a sua intensa actividade ao longo dos anos com Metabolismus, Hall of Fame, The Tower Recordings, The Sonora Pine, Jackie-O Motherfucker, The Bummer Road, Metal Mountains, Chelsea Light Moving e o duo com Marcia Bassett, o percurso a solo parece ser o menos impositivo, acontecendo apenas nos intervalos em que Samara se vê sem uma colaboração que lhe roube toda a disponibilidade. "Sinto que todos os projectos me ajudaram a regressar ao projecto a solo", justifica. "Não quero focar-me demasiado numa só coisa". Mesmo musicalmente, os discos a solo parecem enfiar-se no espaço deixado vazio por todos os outros nomes que gravitam à sua volta. Adepta fervorosa da improvisação e da "comunicação silenciosa" - "permitem uma ligação muito intensa, uma sensação de unicidade, uma grande pureza" -, a solo Lubelski concentra-se numa escrita de canções que o são com relutância, titubeando em torno da folk psicadélica.

Estes resquícios da sua paixão por Fairport Convention, Moby Grape e The Byrds ouvem-se a 29 no Lounge (Lisboa), a 30 no Teatro Viriato (Viseu), a 31 no Teatro Municipal da Guarda, a 1 de Fevereiro no CAV (Coimbra) e a 2 no Centro Cultural Vila-Flor (Guimarães). É ir. Sem medo.

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