“Uma Noite na Ópera” (“A Night at the Opera”), de Sam Wood (1935)

Groucho com o seu bigode pintado, Chico com um sotaque italiano caricatural e Harpo perseguidor compulsivo de mulheres jovens

Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR

Vejam bem como é difícil – acho que até ao mais pintado – não contribuir para a fatalidade a que a comédia é atreita: a de ser esquecida, subestimada, substituída por géneros mais dramáticos e sérios. Em minha defesa – que me convém iniciar já, para rapidamente varrer as sombras de ser preconceituoso relativamente à arte de arrancar gargalhadas aos tristes e aos desanimados – lembro que já aqui apresentei “The Philadelphia Story” (“Casamento Escandaloso”), de 1940, “Here Comes Mr. Jordan” (“O Defunto Protesta”), de 1941, “Les Vacances de Mr. Hulot” (“As Férias do Sr. Hulot”), de 1953, “My Fair Lady”, de 1964, e, de forma que destaco particularmente, “Sullivan’s Travels” (“A Quimera do Riso”), de Preston Sturges (1941), uma muito interessante meditação sobre a importância da comédia na vida real das pessoas que têm uma fraca vida real para mostrar.

“Uma Noite na Ópera”, de 1935, realizado por Sam Wood (“Kings Row”), é muito mais do que uma comédia. Tal como acontece com todos os “grandes filmes” que apresentámos ou apresentaremos nesta rubrica, não há resumo de duas ou três frases ou menção de duas ou três cenas que possa fazer justiça à experiência de os apreciar na sua plenitude. São filmes que abrem mundos e este abriu mundos de comédia não só aos seus espectadores, mas também a gerações de cómicos que se inspiraram nesta feliz combinação de talentos e esforços, entre os mais reconhecíveis dos quais permanecem as palavras de George S. Kaufman – dramaturgo e argumentista de espírito invulgar – e a interpretação dos Irmãos Marx, para seguirem caminhos novos (por exemplo, o célebre grupo inglês Monty Pithon).

E são os caminhos novos, a capacidade de os criar e de nos deixar percorrê-los, que fascinam em “Uma Noite na Ópera”. Naturalmente, os Irmãos Marx apropriaram-se deste e de outros sucessos, já que, para o público, são a face que permanece constante numa equipa de outras peças intermutáveis, incluindo os argumentistas e os realizadores, além de, na sua energia criativa e caótica, acrescentarem elementos insubstituíveis e imprevistos a qualquer guião que se pretendesse filmar. No teatro, onde o controlo efectivo do que se produz em cada representação é menor do que no cinema, a taxa de apartes e acrescentos aos diálogos originais era tal que, uma vez, o autor George S. Kaufman interrompeu um ensaio para demonstrar o seu espanto por ter identificado uma deixa que ele tinha escrito.

Foto

Esse caos controlado, um misto de destruição das convenções da época, assim como dos cenários sempre que possível, e de diálogos absurdos em sucessão vertiginosa são a imagem de marca dos Irmãos Marx, a que cada um dos três mais significativos dá o seu toque pessoal: Groucho com o seu bigode pintado, andar de babuíno estilizado e tiradas desconcertantes; Chico com um ridículo chapéu cónico, sotaque italiano caricatural e execução burlesca de piano; Harpo, exímio tocador de harpa, mudo, perseguidor compulsivo de mulheres jovens e com um capote de onde saem os mais inesperados objectos.

Foto
Aurélio Moreira, jornalista do PÚBLICO, escreve semanalmente a crónica Filmes sem idade

Alguns dos trocadilhos são próprios da língua em que são concebidos, pelo que alguns se perdem na tradução. Mas quem tiver alguns conhecimentos de inglês perceberá o final de uma interessantíssima discussão “jurídica” entre Groucho e Chico sobre as cláusulas de um contrato. O primeiro lê, o segundo (que não sabe ler) ouve e raramente gosta do que ouve. A solução é ir rasgando as cláusulas que não agradam, reduzindo consideravelmente o tamanho do contrato, até uma última, dita “de sanidade”, para atestar o pleno uso das faculdades mentais dos contraentes. Mas como em inglês se diz “sanity clause” e Chico, no seu inglês cerradamente italianizado, entende “Santa Claus”, responde: “You can’t fool me. There is no Sanity Clause [Santa Claus]!...”

Sim, isto é comédia – desde 1935 que é comédia. E ainda hoje envergonha facilmente essas coisas que por aí se vendem como se o fossem.

Sugerir correcção
Comentar