Amy Winehouse: somos menos sem ela

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Magnetismo, traição e compaixão: aquilo que havia de mais honesto e desarmante em Amy Winehouse

A segunda edição póstuma de Amy Winehouse cumpre pelo menos o papel de nos lembrar que somos menos sem ela.

Amy Winehouse At the BBC

Universal
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O culto aos mortos no mundo pop faz-se habitualmente à razão de um lançamento por ano, cuidadosamente largado na proximidade do presépio. De cada vez, achamos que nada mais haverá no fundo do baú, mas há sempre mais qualquer coisa - uns ensaios perdidos, umas sessões ao vivo esquecidas nos arquivos da editora ou no disco rígido de um técnico de som acidental, um património que vai sendo gerido a conta-gotas para que voltemos a comprar um nome, um afecto, manipulando a culpabilidade de, se não abrirmos os cordões à bolsa, não estarmos a ser fiéis aos nossos deuses. Equivale, de certa forma, ao uso de um desfibrilhador: aplica-se um choque que, por momentos, pode criar a ilusão de vida, mas tudo continua igual e o corpo inerte.

No caso de Amy Winehouse, At the BBC é a segunda edição póstuma e, se bem que nunca se pode adivinhar exactamente que material inédito poderá haver ainda na gaveta, a impressão que fica passado um ano sobre Lioness: Hidden Treasures é a de que não haverá muito mais a explorar nos arquivos, uma vez que Lioness partia já da peneira do produtor Mark Ronson, separando o melhor material encontrado entre centenas de horas de inéditos. Algo haverá ainda a extrair daí, naturalmente, mas cada vez mais parecerão fotocópias de fotocópias do original, versões esbatidas e indignas de Winehouse. Até porque a crescente decadência com que a cantora subia a palco na sequência da mais válida contribuição criativa da sua curta carreira - o álbum Back to Black, de 2006 - não facilitará a descoberta de pérolas largadas ao abandono.

At the BBC, numa edição de três DVD e um CD, encontra-se ainda dentro do tácito pacto de decência que deve nortear estas investidas editoriais. Numa já conhecida actuação no Porchester Hall - uma das suas melhores gravações em vídeo -, por alturas de Back to Black, somos colocados perante aquilo que havia de mais honesto e desarmante em Winehouse: uma brilhante e sincera fixação pelas figuras de Mahalia Jackson ou Sarah Vaughan, a par de algumas quase inacreditáveis frases carcomidas pela displicência (natural ou artificial). Basta ouvir os obrigatórios Valerie, Rehab, Tears dry on their own ou Addicted - está tudo lá, nesse misto de magnetismo, traição e compaixão. Equilíbrio frágil que se repete por todo o alinhamento do CD, congregador de curtas actuações em vários programas da estação britânica (destaque para You know I'm no good, quase caribenho).

Mais inesperadas, mas menos entusiasmantes, são algumas das passagens pelo programa de Jools Holland, com direito a DVD autónomo, ao mesmo tempo que a pouca ambição do documentário The Day She Came to Dingle espantosamente nos volta a ligar a uma figura que descobriu a Motown no meio do jazz e do hip-hop. E aí, talvez mais do que noutro qualquer recanto desta edição, cumpre-se o papel de At the BBC e de tudo aquilo que venha a seguir: lembrar-nos que somos menos sem Amy Winehouse.

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