Crítica de música: Rock’n’roll a um passo da revelação total

O Pavilhão Atlântico, quase esgotado, acabou por ser o maior inimigo dos Black Keys. O duo de Akron, Ohio, mostrou em hora e meia tudo o que seu rock'n'roll tem de vital. O som da sala, porém, impediu que este respirasse devidamente.

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Nuno Ferreira Santos
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Nuno Ferreira Santos

The Black Keys
Lisboa, Pavilhão Atlântico
27 de Novembro, 21h50
Cerca de 10 mil espectadores
3 estrelas e meia

Primeiro momento, já depois de os Maccabees, semi fenómeno britânico, terem feito o aquecimento para o que interessava. Ouve-se Howlin’ for you, grandíssima canção de riff de guitarra colado ao órgão e groove insinuante, ouvem-se os “nana nana na” dos coros e caramba, pensamos, não podia haver melhor início que este para o concerto dos Black Keys, rock’n’roll enformado pela sabedoria de toda a história que interessa e activado pela convicção de que, se este som não salva vidas, torna o mundo um lugar mais aprazível e bem frequentado.

Primeiro momento, Howlin’ for you: Dan Auerbach, o vocalista e guitarrista do duo, aproxima-se do microfone, canta o que tem de cantar, mas nada se ouve. Soltam-se apupos que a banda terá tomado por aplausos e, afinal, a aparição de um som descarnado e directo, sem tretas showbiz, na imensidão do Pavilhão Atlântico, não se dá como esperado.

Último momento. A bola de espelhos que surgira em palco no encore desaparece e tudo se concentra naqueles dois em palco, Dan Auerbach e o baterista Patrick Carney, os Black Keys de Akron, Ohio, que há dez anos só queriam fugir de um salário mínimo a lavar pratos para passarem a ganhar o salário mínimo a tocar o bom rock em terriolas inóspitas. Hoje são estrelas mundiais, enchem espaços como este Pavilhão Atlântico que os recebe a cerca de dois terços lotação – plateia quase esgotada, bancadas nem por isso -, mas naquele momento em que se despedem com I got mine, uma hora e meia e vinte canções depois do início afónico acima referido, são apenas isso: dois tipos a alimentarem-se da força vital do blues, da energia transbordante do rock’n’roll e a berrarem e a responderem instintivamente ao que o ritmo pede e ao que a distorção da guitarra liberta. Desce um billboard iluminado enquanto zumbem feebacks e ribomba o bombo e a tarola: “Black Keys”. “Obrigado! Havemos de voltar”, despede-se Dan Auerbach.

Estamos de alma preenchida? Por aquele momento específico em que pareciam esquecidos de tudo em volta, como se aquele espaço para milhares onde é interdita qualquer intimidade fosse uma pequena garagem de uma grande banda a perceber o que será, daí para a frente, a sua vida, diríamos que sim. Mas o concerto dos Black Keys em Lisboa, o primeiro de uma nova digressão europeia, não foi feito totalmente desses momentos.

Como acontece tantas vezes, o som do Pavilhão Atlântico mostrou-se pouco cúmplice: demasiado eco e pouca definição resultam em que, no momento em que o som atinge o público, já se perdeu metade do seu impacto. Tal foi demasiado evidente nas primeiras canções do concerto, em que, enquanto passávamos por Next girl ou Run right back, lutávamos para nos adaptar a uma precariedade diferente da de todos os dias.

Porém, com Dead and gone, a quinta canção de uma noite que passou especialmente pelos últimos Brothers e El Camino, responsáveis pela inesperada ascensão ao estrelato de uma banda que à época do primeiro contava já com cinco álbuns em nove anos de carreira, a locomotiva Black Keys entrou nos eixos.

Sem grandes conversas, com pouco mais que umas palmas que se soltam porque o ritmo assim o exige, com o público na plateia em dança constante, o concerto continuou sob o mote lançado uma e outra vez por Dan Auerbach: “Let’s keep on moving”. Holofotes centrados no duo, que deixavam escondidos na penumbra os dois músicos que os acompanham em digressão, responsáveis por teclas, baixo e guitarras adicionais, passamos pelo balanço explosivo de Gold on the ceiling - união fervilhante e miraculosa de guitarra, órgão tremeluzente e batida seca - ou pelo regresso aos inícios de Thickfreakness, canção título do segundo álbum, quando os Black Keys eram como que uma Jon Spencer Blues Explosion que tivesse viajado até ao Mississípi para não mais voltar.

Ao vivo, a riqueza das produções de estúdio, cheia, bojuda, meticulosa, dá lugar a uma crueza sónica que não esconde o essencial: a forma omnívora e empolgante com que a banda absorveu uma história iniciada lá muito atrás com o blues, e que prossegue hoje, já depois de Jimi Hendrix, Led Zeppelin, de Creedence Clearwater Revival, de Dr. John, dos Gories ou dos supracitados Blues Explosion. Patrick Carney, no seu estilo trôpego mas eficiente, é a âncora, Dan Auerbach, o dono do discurso. O tom bombástico dos Zeppelin assoma em Your touch (mas o refrão é grito punk), o rock transforma-se em cerimónia voodoo numa magnífica interpretação de Ten cent pistol e Hendrix sorri onde quer que esteja quando se ouve o blues reptílico de She’s long gone.

Um pouco antes, Dan e Patrick haviam dispensado os companheiros de palco para mostrar como tudo começara – interpretaram em duo canções como as referidas Thickfreakness e Your Touch. Um pouco depois, chegou a irresistível Lonely boy, ergueram-se sabem-se lá quantas pessoas para tentar dançar como no vídeo respectivo, e mostrou-se perante todos onde chegaram os Black Keys de Akron, Ohio. Com ela, despediram-se pela primeira vez.

Regressaram para encore, iluminados por bola de espelhos e com o falsete glam de Everlasting light. Depois, a explosão final. I got mine: berraria e distorção, bateria e guitarra a responderem instintivamente uma à outra.

De certa forma, porém, soube a pouco. Não só pelo som, que nunca foi mais que satisfatório. Na verdade aquela música, que pede proximidade, que respira melhor quanto conseguimos olhar os músicos nos olhos, quando lhes sentimos o suor e o bafo, nunca poderia ser muito melhor num espaço daquela dimensão. Mas, de facto, seria impossível reunir todos os que queriam vê-los numa sala onde o rock’n’roll dos Black Keys se revelasse totalmente.  

Notícia corrigida às 16h42
 

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