O sítio das coisas selvagens

A experiência proletária e a ferocidade, um tremor do que é vital e cruel - o cinema de Peter Mullan

Peter Mullan, actor escocês, da tribo de Ken Loach (Riff Raff, My Name is Joe, prémio de interpretação em Cannes 1998) estreou-se nas longas-metragens em 1997, com Orphans, pequeno, maravilhoso filme sobre irmãos separados que em adultos se reencontram para enfrentarem (mal) a orfandade. Vindo da tradição do cinema social, exibia de forma temerária a sua indefinição de género - às tantas, o telhado de uma casa era arrancado pelo turbilhão emocional das personagens, como num delírio de comédia negra.


No filme seguinte, As Irmãs de Maria Madalena (2002), Mullan continuava a documentar uma experiência proletária - os seus filmes, diz, não sendo “autobiográficos”, dão conta de uma experiência “pessoal”. Mas a energia dos rostos e gestos não aprisionados por etiquetas, carrasco ou vítima, fazia com que o “filme de denúncia” - a história irlandesa de quatro jovens encerradas, nos anos 60, num convento das Madalenas, instituição gerida pelas irmãs da caridade que “hospedava” “pecadoras” - se desse a experimentar como filme de terror.

Num e noutro, portanto, o espectador vacilava perante uma gama de possibilidades. Com Neds, continua uma experiência proletária - gangs juvenis, non educated delinquents, a que Mullan temporariamente pertenceu, antes de, como contou, ter sido expulso. E continua a ferocidade: um tremor do que é vital e cruel. Eis John McGill, na Glasgow dos anos 70, a prometer percurso académio elevado no início da secundária, e como, com a ajuda do alcoolismo do pai (interpretado pelo próprio Mullan, que várias vezes falou do seu pai alcoólico), do desinteresse dos professores, do abuso que se mascara como disciplina, vai sendo ocupado pelo embaraço da inteligência, vai sendo tomado pela vergonha do dotado, abandonando-se à mediocridade que o salva de ser distinto. E John transforma-se num estafermo.

Esse “programa”, que se anuncia logo naquele plano inicial em que John é ameaçado, como o início de uma cadeia de violência, está definido para a personagem. E nunca larga o filme. O que às tantas o aprisiona: como um destino de classe, Neds decorre sempre como se fosse uma confirmação. Depois de uma primeira parte de violência em surdina, como que a preparar o espectador para o descarrilamento, como que a dar(-lhe) razões, o filme entra em modo fantasioso - a tal vacilação de tom e de género de que Mulan gosta -, ainda que sem argumentos de anarquia e insurreição cinematográficas à altura do If, de Linday Anderson, por exemplo, que talvez sirva de modelo aqui. Dispensava-se o duelo com Jesus crucificado, mas já o plano final parece querer libertar-se da proposta determinista. Não se falará muito dele para não estragar a “visão”; dir-se-á que há ambiguidade q.b., não se sabe se a personagem é encerrada no sítio das coisas selvagens ou se aquele é o momento da sua transcendência.

Sugerir correcção
Comentar