A classe média americana costumava sonhar com o futuro. Agora quer o passado de volta

Pertencer à classe média era ter uma casa, um emprego sólido para toda a vida, férias anuais e uma reforma confortável. Quando essas coisas deixam de estar disponíveis, a que classe se pertence? A revista 2 termina nos EUA a série de reportagens sobre a classe média que começou em Portugal e passou pelo Brasil, China e Espanha

Jason, a mulher Stephanie e a filha de quatro anos, Jessica
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Jason, a mulher Stephanie e a filha de quatro anos, Jessica Julia van Wagenen
Donna Larravee-Cohen: há três anos, a gráfica onde trabalhou 30 anos  rescindiu o contrato
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Donna Larravee-Cohen: há três anos, a gráfica onde trabalhou 30 anos rescindiu o contrato Julia van Wagenen
Lisa e o marido, Steven, reabriram dois pequenos negócios em Port Clinton
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Lisa e o marido, Steven, reabriram dois pequenos negócios em Port Clinton Julia van Wagenen

1. Donna Larravee-Cohen não sabia que existiam classes sociais até entrar na escola secundária - e não foi nenhum professor que lhe ensinou. "Cresci numa cidadezinha estranha no centro de Massachusetts que estava dividida em três secções. A minha secção era onde todas as fábricas estavam e os moradores eram todos operários. Nós vivíamos na zona sul da cidade e havia ainda a zona norte e o centro. Só quando chegávamos ao ensino secundário é que as três secções coincidiam na mesma escola. E foi aí que nós, os miúdos da zona sul, descobrimos que éramos pobres. Não sabíamos porque toda a gente era igual. Nunca tínhamos saído do nosso pequeno canto e visto que as outras secções tinham casas impressionantes. E os miúdos que viviam nessas casas olhavam para nós como se fôssemos inferiores. Foi a minha primeira introdução às classes e nunca mais me esqueci."

Nos últimos tempos, Donna tem-se perguntado a que classe pertence. No auge da sua carreira em artes gráficas, não há muito tempo, os seus rendimentos anuais eram de 55 mil dólares, um valor que a colocava bem no centro da classe média americana. Em Cleveland, Ohio, onde vive, 55 mil dólares "é um óptimo salário". Era. Há três anos, a gráfica onde Donna trabalhou durante três décadas rescindiu o contrato.

"A nossa indústria mudou drasticamente nos últimos anos, à medida que mais pessoas e mais pessoas passaram a ter computadores e a fazer elas próprias este tipo de trabalho." Tudo, desde cartões de visita, cartazes, panfletos, publicidade, papelaria. "Boa parte do trabalho passou a ser feito na China, no estrangeiro. Com os anos, as pessoas passaram a aceitar um padrão de qualidade mais baixo quando toda a minha formação é baseada na qualidade, no acerto de cor, em produzir um belo resultado visual. Agora a única preocupação é quão barato pode ser." Donna continua a trabalhar para a mesma empresa gráfica mas em regime freelance. "No ano passado, ganhei 14 mil dólares, menos de um terço do que costumava ganhar, a fazer a mesma coisa, só que menos. Não ganho o suficiente para conseguir poupar alguma coisa. E estou a dever às Finanças porque não consegui pagar os impostos que devia ter descontado. Como colaboradora freelance, não tenho direito a Segurança Social nem seguro de saúde. Quando se recebe 14 mil dólares por ano, é difícil pôr dinheiro de parte para isso. O meu marido tem seguro de saúde mas para incluir-me a mim no plano dele seriam mais 200 dólares por ano e ele não ganha o suficiente para poder suportar isso. Sinto-me num beco sem saída. Não sei o que fazer."

Donna tem 60 anos. O cabelo é escuro, com fios brancos - abundantes, mas suficientemente longe uns dos outros para não lhe darem uma aparência grisalha. Os dentes têm manchas escuras. "Tenho vários problemas médicos que devia tratar mas não tenho dinheiro. Têm-me dito para tentar a Clínica de Cleveland, que tem serviços de saúde gratuitos para pessoas carenciadas. Mas sinto-me mal, nunca precisei de caridade, isso era para as pessoas pobres. É essa a fronteira? É isso que me vai empurrar para fora da classe média? Não sei."

Nos vários retratos que a fotógrafa Julia van Wagenen tirou dela, Donna tem sempre a mesma expressão no rosto - uma expressão comparável ao súbito pânico que os veados evidenciam quando as luzes nocturnas de um carro recaem sobre eles antes do embate.

Não existe uma definição oficial de quem compõe a classe média americana. Os parâmetros costumavam ser claros: no pós-guerra, quando ela pôde prosperar graças ao impulso dado pelo New Deal e por um boom económico numa América sem competidores globais, pertencer à classe média era ter uma casa, um carro, um emprego sólido para toda a vida, uma família, férias anuais e uma reforma confortável.

Mas a vida tornou-se menos previsível para a classe média. Como Edward Luce, correspondente do Financial Times nos Estados Unidos, constata no seu recém-publicado livro Time To Start Thinking: America In The Age of Descent, o salário médio americano tem vindo a estagnar desde a década de 1970 ao mesmo tempo que a capacidade da economia para criar emprego tem vindo a contrair. A manufactura representa apenas um décimo do emprego no sector privado nos Estados Unidos, ao passo que os postos de trabalho que surgiram no seu lugar frequentemente não incluem benefícios sociais como pensões ou seguro de saúde. Na década de 1960, o trabalhador da General Motors ganhava o equivalente a 60 mil dólares anuais nos valores de hoje. O gigante do comércio a retalho Walmart, que é o maior empregador nos Estados Unidos, paga às suas trabalhadoras maioritariamente femininas uma média de 17.500 dólares por ano, sem benefícios sociais.

O Pew Research Center acaba de divulgar um estudo que constitui um retrato sombrio sobre o bem-estar económico da classe média americana. Intitulado A Década Perdida da Classe Média, ele nota que entre 2000 e 2010 este grupo social encolheu, ficou mais pobre e está mais pessimista em relação ao futuro. Pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o rendimento médio da classe média americana na última década desceu, em vez de subir. Em 1971, a classe média representava 61% da população; em 2010, representa 51%.

"Em termos demográficos, é uma mudança bastante rápida", nota à revista 2 Richard Morin, um dos responsáveis pelo estudo. "E é particularmente digno de nota porque a América sempre se orgulhou do facto de ter uma classe média grande e robusta."

Os autores do estudo definiram classe média como todos os adultos com rendimentos entre 39.418 dólares e 118.255 dólares (respectivamente 67% e 200% da média nacional).

Em 1971, a classe média reclamava 62% do total de rendimentos dos agregados familiares. Em 2010, a proporção é 45%. Durante o mesmo período, os escalões superiores, mais ricos, viram a sua fatia do bolo aumentar, de 29% para 46%. "Ao contrário de tantas mudanças demográficas que acontecem sem que as pessoas se apercebam delas, os americanos estão a sentir este movimento."

Na sondagem realizada pelo Pew, cujos resultados fazem parte do estudo, 85% dos inquiridos (todos membros da classe média) dizem que é mais difícil manter o seu padrão de vida do que era há dez anos; 71% consideram que é mais difícil avançar na vida. E 42% dizem que ainda não recuperaram da Grande Recessão de há quatro anos, quando oito milhões de americanos perderam os seus postos de trabalho.

"Quando fui despedida, estava confiante de que ia encontrar outro emprego na minha área. Afinal, eu tenho 40 anos de experiência", diz Donna Larravee-Cohen. "Nos últimos três anos, enviei centenas, centenas, centenas de currículos. E o processo é todo online e é tudo secreto - "clique no botão", "enviado". E só uma vez é que recebi resposta. Nem sequer nos respondem. Não sabemos para onde é que aquilo vai no ciberespaço. Preferia receber uma carta de rejeição do que ser totalmente ignorada. E depois, quando falamos disto tudo, o que nos dizem é: "Se calhar o teu currículo não estava correcto." Ou: "Se calhar não estás a fazer bem as coisas." A culpa é nossa que não nos empreguem."

Donna ponderou voltar a estudar, tirar um curso na sua área. Ela formou-se numa escola técnico-profissional mas não tem qualificações universitárias - e ninguém concede entrevistas de trabalho a quem não tenha, pelo menos, um bacharelato. "Mas quando terminar terei 63 anos. Será que me vão contratar? E vou dever dinheiro das propinas. Ser mulher, ter 60 anos, não ter um grau académico é como ter uma doença ou algo parecido. Não tenho nenhumas poupanças ou plano de reforma. Vivemos na mesma casa há 27 anos - a hipoteca já devia estar quase paga, mas renegociámos para fazer isto e renegociámos para fazer aquilo. Ainda temos uns 13 anos de pagamentos para fazer. E é para isso que serve todo o dinheiro que faço neste momento - para pagar os empréstimos da casa. O meu marido paga as outras contas. E quando não há mais, não há mais."

Donna diz que está "seriamente" a pensar arranjar um ou mais empregos precários - como servir às mesas, por exemplo. "É desmoralizador. Uma pessoa imagina que, nesta altura da vida, já devia ver alguma retribuição por ter trabalhado tantos anos. Mas não há nada."

Quando perguntamos se já começou a procurar esse tipo de empregos, diz que ainda não. "Mas em algum momento vai ter de acontecer." A destinatária da última frase parece ser ela própria, mais do que nós.

"E eu estou OK. Não estou feliz com a situação. Mas estou a conseguir gerir. Tenho tantas pessoas amigas que perderam as suas casas, os seus empregos, que estão a viver com familiares... Eu e o meu marido temos uma casa, não estamos a passar fome. Mas a minha máquina de lavar loiça pifou há imenso tempo - pouco me importa, acho que não iria substituí-la de qualquer das formas porque somos só nós os dois. O meu frigorífico deita água, o meu forno não trabalha, a minha máquina de lavar roupa está a dar as últimas, a secadora está quase a explodir, a minha caldeira talvez sobreviva a este Inverno, mas não sei, há três anos disseram-nos que não. Se qualquer uma destas coisas acontecer, nós não seremos capazes de reparar nada. Portanto, é uma sensação constante de viver com a corda na garganta, esperando que as coisas melhorem. E as coisas não vão melhorar."

Como vai a classe média americana hoje? "Isso é o que está a acontecer à classe média", diz Donna.

2 Quando pedimos direcções para a classe média americana, a resposta foi unânime:

"Vá até ao Ohio."

O Ohio é um dos estados do Midwest, uma designação geográfica que (ainda) cristaliza uma certa ideia da América típica. O Ohio foi um dos grandes estados industriais da América, como os vizinhos Michigan e Pensilvânia, e apesar de grande parte das fábricas terem fechado ainda é um estado mais industrial do que pós-industrial. Mais de metade do eleitorado no Ohio - 54%, segundo a Brookings Institution - é composto pela white working class, a classe trabalhadora branca sem um curso superior e com rendimentos médios ou baixos. É um grupo social que frequentemente se considera esquecido ou marginalizado. Mas também é muito cobiçado pelo poder político, sobretudo em anos eleitorais. Com a particularidade de o Ohio ter sempre votado no vencedor das presidenciais desde 1960.

Há duas semanas, o candidato presidencial republicano, Mitt Romney, fez uma digressão de autocarro pelo Ohio que baptizou de "O Plano Romney Para Uma Classe Média Mais Forte". Obama fez nove visitas ao estado desde o início do ano. As duas campanhas colocaram a classe média no centro das suas mensagens eleitorais. Num discurso no Ohio a 5 de Julho, Obama referiu-se à "classe média" 24 vezes.

Mas a classe média não está convencida. "Eu gostava de lhes perguntar: "Alguma vez tiveram um pequeno negócio? E vários filhos? Já tentaram criá-los com 100 dólares por semana? Alguma vez foram a uma mercearia e tiveram de desistir de algumas compras porque não tinham dinheiro suficiente?"" Por fim, Lisa Gilleland gostaria de perguntar-lhes: ""Você é uma pessoa real?" Porque eles são postos num pedestal e é difícil para nós perceber o que é que eles são enquanto indivíduos. Eles precisam de falar das dificuldades por que as pessoas estão a passar e ser uma espécie de Oprah da sociedade."

Port Clinton, uma vila de seis mil habitantes a pouco mais de 100 quilómetros a oeste de Cleveland, não parece ter mudado desde a década de 1960, com a excepção de que a Main Street (a rua central que concentrava o comércio local) foi desertando à medida que o Walmart e as cadeias de fast-food se fixaram nas redondezas. Há cerca de um ano, Lisa e o marido, Steven, reabriram dois pequenos negócios em Port Clinton, um diner e uma mercearia que tinham fechado. Só puderam fazê-lo porque tiveram um amigo disposto a investir - os bancos nunca teriam aprovado qualquer empréstimo. "Abrimos em Junho do ano passado e no princípio tivemos pouco movimento porque levou algum tempo até as pessoas se habituarem à ideia de que o restaurante tinha reaberto", diz Lisa, 44 anos, sentada numa das mesas do Underwood"s Grill. "Mas agora, finalmente, já conseguimos ter uma ideia do nosso orçamento e de quanto dinheiro estamos a fazer por semana. Mas no Deans [a mercearia, que nos padrões portugueses é mais parecida com uma loja de conveniência porque não tem produtos frescos] varia muito. Nunca sabemos quando é que vamos ter uma semana boa ou uma semana má. Mas acho que é assim em todo o lado - mesmo nas grandes superfícies. Se for até ao Walmart em Catawba [Road], vai ver um grande supermercado com quase ninguém lá dentro."

Lisa diz que alguns dos seus clientes só têm dez dólares por dia para gastar. "É assim que a maior parte das pessoas vive hoje. Elas já não vivem preocupadas com o final do mês, vivem preocupadas com o dia-a-dia."

Lisa e Steven viveram em diferentes estados - Virgínia, Carolina do Sul, Texas, Califórnia - e a economia no Norte do Ohio está em pior estado do que todos eles. Por que é que não vão embora?

"Porque há tanta coisa aqui que, quando uma pessoa não vive aqui, não sabe que existe", diz Steven, 42, ex-cozinheiro no Exército. "Por exemplo, as pessoas aqui são calorosas. Elas podem não conhecê-la mas se a virem na rua cumprimentam-na."

"Na Virgínia, não tem isso", nota Lisa.

"Nós vivemos em Richmond, Virgínia, onde se disséssemos olá a alguém na rua levávamos logo com um gesto obsceno", diz Steven. "E é um óptimo lugar para criar filhos. O único problema de criar filhos aqui é que ninguém quer correr o risco de fazer alguma coisa para estes miúdos terem com que se ocupar. Há tantos edifícios vazios que podiam ser alguma coisa - um ringue de patinagem, uma sala de cinema."

O Partido Republicano e o seu candidato presidencial têm promovido uma retórica anti-Governo, insistindo na ideia de que um dos factores que está a destruir a economia e a classe média americanas é o excesso de intervenção do Estado. Mas Lisa gostaria que o Governo pudesse fazer mais por pessoas como ela - por exemplo, criar um programa de crédito para quem quisesse investir em pequenos negócios na sua comunidade. Porque "os bancos não estão a emprestar, a proporção de famílias que perderam as suas casas porque deixaram de poder pagar os empréstimos imobiliários ainda é muito alta, houve muita gente que foi embora e muitas fábricas que fecharam, eliminando centenas de postos de trabalho".

"Perder o emprego não é o pior que pode acontecer", nota Edward Luce em Time To Start Thinking. "Há mais famílias na falência por causa de emergências médicas."

"Eu já lhe falei de nos mudarmos para o Canadá, porque ao menos teríamos cuidados de saúde gratuitos", diz Lisa. Há um par de anos, ela foi diagnosticada com um cancro no útero mas não tinha um seguro de saúde nem o dinheiro para pagar uma histerectomia. "Eu não tinha escolha. Ou fazia a cirurgia ou não ia durar muito tempo." Lisa tentou qualificar-se para o Medicaid, o programa de financiamento médico para pessoas com baixos rendimentos, mas não foi aprovada porque ela e o marido tinham um nível superior de rendimentos. Steven arranjou um trabalho em part-time num hotel só para poder beneficiar de um seguro de saúde que permitia cobrir as despesas médicas de Lisa. "E não soa lá muito bem, mas, depois de ela fazer a histerectomia e ter alta do hospital, eu despedi-me", diz Steven.

3"Há dias ouvi na televisão que a classe média é quem faz 50 mil dólares ou mais. Só na CNN é que alguém que faz menos de 50 mil dólares é considerado pobre. Não percebo como é que chegaram a essa conclusão", diz Sandy Fandrich, uma mulher obesa com cabelo à tigela. "Neste condado, 50 mil dólares é muito dinheiro."

Ottawa County, o condado que inclui Port Clinton, tem uma das piores taxas de desemprego do Ohio, ouvimos dizer mais do que uma vez. Quando a recessão económica aconteceu, há quatro anos, ela não parece ter afectado drasticamente a comunidade local. "A nossa comunidade foi afectada há muito tempo, com a saída das fábricas. Não me lembro de ouvir ninguém dizer: "Caramba, a recessão atingiu-nos em cheio." Percebe o que quero dizer?"

Quando descrevemos o tipo de pessoas que poderiam contribuir para esta reportagem - gente com dificuldades económicas, alguém que tenha perdido o emprego nos últimos anos ou que precise de dois empregos para pagar as contas -, Sandy responde:

"Isso é praticamente toda a gente."

A era do emprego sólido, seguro, para toda a vida, pertence ao passado. De acordo com algumas estimativas, quando atingir os 40 anos, o americano médio terá tido qualquer coisa como 12 empregos, quando os seus pais só tiveram um ou dois. Robert Gordon, um economista da Northwestern University, no Illinois, descreve este fenómeno como "a ascensão do trabalhador descartável".

"Há demasiadas pessoas à procura de emprego", diz Jason Weeks, 41 anos. "A menos que se tenha todos os requisitos que as empresas exigem - claro que outras 20 pessoas podem ter a mesma coisa. É muito competitivo. Temos de ser quase perfeitos. Ou dizer as coisas certas às pessoas certas para entrar."

"E quando se consegue um trabalho o salário é baixo", diz a mulher, Stephanie, 38 anos. "Muitos dos empregos que o Jason teve no início, nos primeiros anos, pagavam 17 dólares à hora. Agora são só dez."

Em Abril deste ano Jason começou a trabalhar na fábrica da Whirlpool, em Clyde, a 30 quilómetros de casa. É um contrato temporário, mas Jason tem esperança de vir a tornar-se num trabalhador permanente. "Pelo menos já tenho um pé na porta. Tenho mais de dez anos de experiência na área, por isso talvez consiga uma entrevista de trabalho na Whirlpool. É estranho, mas não tive isso."

Como outras grandes companhias americanas, a Whirlpool já não gere os seus recursos humanos internamente. Em vez disso, esta multinacional paga a uma agência, Kelly Services, para contratar novos empregados e processar os seus salários. "É mais barato. E sempre é menos uma inconveniência", diz Jason. Como não há qualquer laço entre a Whirlpool e estes trabalhadores e o contrato é temporário, a empresa não tem de oferecer os mesmos benefícios que paga a um trabalhador permanente. "A Whirlpool não contrata ninguém directamente há anos. Tenho um amigo que está lá há uns 14 anos e ele foi o último."

Perguntamos a Jason se tem uma vida melhor do que a geração dos seus pais. "Penso que eles tinham mais estabilidade do que nós. Só por causa da volatilidade do mercado de trabalho hoje em dia. Uma pessoa pode ter um bom emprego hoje e perdê-lo amanhã. Antigamente, quando se ficava sem emprego, era fácil encontrar outro. E um emprego bem pago. Hoje já não é assim."

Stephanie, a mulher de Jason, é técnica de reinserção social no Tribunal de Menores do condado de Ottawa County. Têm uma filha de quatro anos, Jessica. Visto de longe, é o american dream: uma família que fica bem na fotografia, duas casas, vários carros, incluindo um raro e flamejante Chevrolet Malibu de 1980. Mas os Weeks não poderiam sustentar uma família maior ("razão porque estamos a pensar não ter mais filhos", diz Stephanie). O Malibu avariou subitamente há dias. Uma das casas está à venda desde Fevereiro e ninguém se mostrou interessado em comprá-la. Ainda devem cerca de metade do empréstimo ao banco. Hoje, ela vale menos do que quando a compraram, há 15 anos. "Pensámos que se alugássemos uma casa, estaríamos a deitar dinheiro fora. Ao passo que comprar seria um investimento, porque podíamos vendê-la mais tarde. Mas as coisas não estão a correr como pensávamos", diz Stephanie.

A cama do casal não cabe no quarto da casa nova, por isso dormem com o colchão no chão. As janelas precisam de reparação. O cadeirão da sala de estar está partido. Comer fora de casa é um luxo. Nunca têm férias. Jessica recebe roupa e sapatos de primas mais velhas. Stephanie compra roupa nos saldos um ano antes, quando um par de calças custa um dólar ou pouco mais. "Ser classe média é mais difícil hoje em dia", diz ela.

4 James Gilleland traz a América ao peito. A sua t-shirt preta diz "USA" e tem a silhueta do país estampada. O seu cabelo está cortado rente dos lados, como é habitual ver em militares. Mas James é tudo menos um estereótipo. Se tivesse de resumir a história da sua vida, ela seria: "Trabalhou no duro." Mas, felizmente, não é preciso resumir: James - ou Jim, como é conhecido - gosta de falar.

"Em tempos, alguém disse que os americanos eram preguiçosos e iletrados - não sei quem nem de que país era, mas talvez possa procurar no Google?", pergunta. (Yoshio Sakurauchi, um parlamentar japonês, disse em Janeiro de 1992 que os problemas económicos dos Estados Unidos se deviam à qualidade inferior da sua mão-de-obra. "Os trabalhadores americanos são preguiçosos" e muitos "nem sequer sabem ler", terá dito.) "É verdade que estamos mal habituados. Temos tudo à mão de semear. Nos bons velhos tempos, não tínhamos de nos esforçar muito para conseguir o que quer que fosse", diz Jim. "Mas hoje em dia o dólar já não vale o que valia. Por exemplo, no meu caso, 80% do que ganho serve para pagar contas e despesas."

Mas Jim não está a queixar-se. Aliás, é difícil imaginar este homem queixar-se de coisa alguma. Quando ele e a mulher decidiram que estava na altura de começar uma família, concordaram que ela deixaria de trabalhar para poder tomar conta dos seus três filhos, "o que é bastante raro, nos dias de hoje", diz. Nos últimos 15 anos, Jim tem sustentado a família inteira. Quando o seu salário de 18 dólares e 10 cêntimos à hora como operador de produção na Whirlpool não chega para tudo, Jim arranja o que puder para fazer uns dólares a mais.

Há seis anos, a mulher Connie foi diagnosticada com um pseudotumor cerebral e desde então fez 29 intervenções cirúrgicas. Felizmente, o seguro de saúde de Jim é extensível a toda a família, mas ainda assim a doença da mulher implica uma maior pressão financeira porque, apesar de descontar para o seguro, há pagamentos que têm de ser feitos do bolso. Juntando as duas coisas, o seguro de saúde custa cerca de 14 mil dólares por ano. Com as horas extraordinárias, Jim trabalha uma média de 60 a 70 horas por semana, mais 20 do que o normal. Até ao Verão de 2011, e durante dois ou três anos, ele acumulou o emprego na fábrica da Whirlpool com outros trabalhos extra: cortar relva, pintar casas, distribuir jornais, o que quer que fosse onde quer que houvesse trabalho. O dia podia começar às 6h30 da manhã e terminar às 2h30 da madrugada. "E no dia seguinte, recomeçava. Isso não acontecia o tempo todo, mas acontecia com frequência. Eu sei que parece uma loucura, mas aconteceu mesmo. Claro que os cabelos brancos denunciam tudo isso."

Mas um homem tem de fazer o que um homem tem de fazer, como ele diria. Ou John Wayne.

Jim tem 44 anos mas não parece porque ele não soa como um homem da sua geração. Jim é old school - a expressão é dele. O que é ser "velha guarda"? "Valores. Respeito."

"A geração anterior à minha é a dos baby boomers [nascida no pós-guerra, entre 1946 e 1964]", diz. "Essa geração teve imensos recursos. Empregos que pagavam muito bem, óptimos seguros. Os pais dos baby boomers tinham poupado e como cresceram durante a Depressão encaravam a vida com mais seriedade." Jim acredita que tem mais em comum com essa geração do que com os baby boomers. "E depois vêm os baby boomers, que gastam todo o dinheiro a comprar coisas e mais coisas, pensando: "A vida é boa, pá." E o que é que estão a ensinar aos seus filhos? Que a vida é fácil. Pois bem, a vida não é fácil. Uma pessoa tem de levantar-se todos os dias para ir trabalhar. A vida é uma coisa séria." Jim Gilleland, senhoras e senhores: consciência da classe média.

A classe média não costuma ser autocrítica. Na sondagem que fez para o seu estudo, o Pew Research Center perguntou aos seus inquiridos quem é que culpavam pelas dificuldades que a classe média enfrentou na última década. Eles apontam o dedo ao Congresso, às instituições financeiras e aos bancos, às grandes empresas, aos últimos dois governos (Bush e Obama) e à competição estrangeira. A responsabilidade pessoal está no fim da lista: só 8% consideram que a própria classe média é "bastante" culpada; 42% acreditam que tem pouca culpa; 47% dizem que não tem culpa.

Jim, que é irmão de Steven Gilleland, com quem falámos antes, no restaurante, começou a trabalhar na Whirlpool aos 18 anos, depois de terminar o liceu. Por que é que não continuou os estudos? "Eu queria ser como o meu pai. O meu pai trabalhou mais de 30 anos numafábrica. Todos os dias ele ia para o trabalho, picava o ponto e quando terminava voltava para casa, olhava pela família, brincava com os filhos, cortava a relva enquanto a minha mãe fazia o jantar, ou reparava alguma coisa... Ele nunca contratou ninguém para pintar a casa ou aparar a relva - ele fazia tudo. A maior parte dos tipos com quem trabalho pára na estação de serviço para beber uma cerveja antes de ir para casa, ou num bar. Eu não. Como dizia, eu sou como o meu pai - pico o ponto, vou para casa, olho pela minha família. E isto é o american dream. Ouve-se muitas vezes as pessoas dizerem: "Eu estou a viver o sonho." Eu não estou a viver o sonho dos outros, estou a viver o meu. Trabalhei arduamente por tudo o que tenho."

Sempre que perguntámos às pessoas nestas páginas o que significava para elas ser classe média, hesitaram ou disseram que não sabiam. Excepto Jim. "Trabalhar no duro. Moderação. Ser realista."

Nada a ver com os rendimentos?

"Não. Dizem que a classe média está a desaparecer. Discordo."

Porquê?

"Porque eu sou classe média. Quando me vejo ao espelho e pico o ponto todos os dias, isso sou eu. Ainda aqui estamos. A classe média vai sobreviver a estes tempos que estamos a viver, apesar dos desafios.

Esta reportagem foi publicada na Revista 2 a 2 de Setembro de 2012 no âmbito do projecto PÚBLICO +

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