Gaiteiros de Lisboa: Prova de vida superada

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Carlos Guerreiro, um dos Gaiteiros de Lisboa Pedro Maia

[4 estrelas]
Casa da Música (sala dois)
Quarta-feira, 10 de Outubro, 21h00
Sala quase cheia

Desde 2006, com Sátiro, que os Gaiteiros de Lisboa não editavam um álbum. Não quer isto dizer que o grupo tenha estado parado: para além de tocar regularmente ao vivo, há que sublinhar o facto de Avis Rara (lançado em Junho deste ano) ter sido gravado em Maio de 2009. Foram os constrangimentos do mercado português que adiaram o disco por três anos – seria a Eurídice, o braço editorial da d’Orfeu Associação Cultural, a editá-lo. Porém, após seis anos sem apresentar novidades, a banda considerou especiais os espectáculos de apresentação do novo longa-duração. “É uma espécie de prova de que estamos vivos”, referiu Carlos Guerreiro, logo no arranque do concerto.

A primeira conclusão a retirar é simples: a prova foi superada com distinção. O grupo lisboeta foi protagonista de um espectáculo enérgico, divertido e irónico q.b., centrando-se nas novas canções mas também em temas dos anteriores discos. Do primeiro (Invasões Bárbaras, de 1995) foi lembrado, logo a abrir, A ribeira do sol posto – uma composição popular do Baixo Alentejo que é um profundo lamento – e foram ainda recuperados temas como Velha bufelha, que há muito o grupo não interpretava.

Mesmo indo “pescar” grande parte dos temas ao cancioneiro popular, a abordagem dos Gaiteiros está longe de ser canónica. A presença das gaitas (transmontana e galega) oferece às composições uma conotação medieval (muitas vezes ampliada pelo recurso a velhas lendas, como no caso de Devota da Ermida), mas o futuro parece ser sempre o horizonte do grupo. A nível percussivo, por exemplo, muitos dos ritmos criados soam eminentemente modernos. A riqueza harmónica foi outra constante.

Para além disso, a diversidade que instrumentos que levam para o palco é impressionante, desde o crótalo (dois pequenos pratos de bronze) até à trompa e à sanfona; depois, há vários artefactos criados pela própria banda, sempre com o objectivo de servir as canções e não de mera exibição. Por exemplo, em Fez Sábado Quinta-Feira (tema que abre Avis Rara), destacou-se o “tubarões”, um instrumento com oito tubos percutidos por dois chinelos; o canarion surgiu como uma forma de reproduzir o efeito de quatro ou cinco flautas de pã em simultâneo; o túbaros de Orfeu chamou a atenção pelos vários tubos coloridos que o compõem e que reagem ao sopro.

Quer no caso dos temas oriundos da tradição popular quer nos originais, perpassa maioritariamente uma profunda ironia. Entre as novas composições, destaca-se o single Avejão, de Avis Rara, que Carlos Guerreiro definiu como uma “metáfora ornitológica sobre o poder” e cuja letra foi alterada, num dos versos finais, de “Esquadrão Falcão e Abutre” para “Esquadrão Relvas”. Proparoxitonias é um tema constituído como o máximo de palavras esdrúxulas possível, dando origem a versos tão incomuns como “Também os frades canónicos exploram recursos hídricos”. No cancioneiro popular, os Gaiteiros pescaram temas cómicos como Quando o Judas teve sarampo.

Após 90 minutos de espectáculo, já no encore, surgiram em palco as Vozes da Rádio, para interpretar Subir, subir e Lenga, lenga. Foi um final alegre, com a gaita em destaque, a percussão intensa e palmas a compasso. É caso para dizer que os Gaiteiros estão vivos e recomendam-se.

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