A mais bonita história da dança faz 50 anos

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Meat Joy, de Carolee Schneemann, numa representação dos anos 60 DR

Em Nova Iorque, no início dos anos 60, houve quem quisesse fazer diferente. A ruptura criada por Trisha Brown, Steve Paxton ou Carolee Schneemann é uma memória que a cidade gosta de celebrar.

Ninguém podia prever que aquelas noites na Judson Memorial Church, durante aqueles primeiros anos da década de 1960, definiriam a dança contemporânea e muito menos que, 50 anos depois, o trabalho dos coreógrafos Carolee Schneemann, Lucinda Childs, Trisha Brown, Steve Paxton, Yvonne Rainer, Rudy Perez, Deborah Hay ou Ruth Emerson seria ainda um ponto de interrogação, mais do que uma ruptura, como foi então numa Nova Iorque muito diferente. A começar pelo diálogo entre diferentes disciplinas, artistas e a existência de espaços de apresentação para uma dança menos institucional.

Por isso, o que o programa Judson Now, que o Danspace organiza até ao fim do ano, celebra é "a criação de liberdade pela qual foram responsáveis". Para Judy Hussie-Taylor, investigadora e comissária do Danspace Project, "eles nunca esperaram por nada, e isso ainda existe: é esse o verdadeiro legado". Isso e um desejo forte de pensar como foi possível imaginar uma outra realidade para lá da que era proposta, então, pela dança norte-americana.

Num ensaio publicado este mês na revista Movement Research, o historiador Joshua Shirkey relaciona a amplitude dos diferentes discursos dos coreógrafos da Judson com as transformações pelas quais as artes visuais estavam a passar. "Os coreógrafos da Judson aproximaram-se da história da dança como se fosse um objecto ready-made que pudessem usar", explica, remetendo para as experimentações plásticas do início do século XX. "Eles apropriaram-se, descontextualizaram e colaram elementos da dança clássica e moderna, muitas vezes para sublinhar essas tradições como fósseis, e a avant-garde como um outro produto, independentemente das suas pretensões originais no que respeita à autenticidade e à universalidade."

Trajal Harrel, coreógrafo e intérprete que há dez anos se dedica a investigar sobre a relação entre a cultura de rua e a dança contemporânea, nomeadamente através da sua série em cinco partes Twenty Looks or Paris Is Burning at the Judson Church - da qual vimos (M)imosa, em 2011 no festival Circular, e em 2012 no Centro Cultural de Belém/Alkantara Festival -, explica que o "legado da Judson é um desejo de invenção" e vai muito para lá das próprias peças". E usa uma palavra que permite definir, nunca encerrando, as hipóteses de diálogo sugeridas pela Judson: imaginação.

Mas tudo isto, hoje, não vive sem que o mito tenha tomado conta da realidade. No passeio da Washington Square alguém deixou escrito "Judson for ever". A marca é pisada todos os dias por patins, sapatilhas e patas de cães, ignorando o que aquela declaração possa significar.

Judie Hussie-Taylor reconhece que há um grande peso mítico associado a esses tempos, muito por uma ausência de documentos filmados que pudessem registar o que ali se passou. E isso faz com que à ideia de encontros se sobreponha sempre a ideia de movimento, como se tivesse sido algo estrategicamente organizado.

"Eram todos muito mais livres do que isso", conta-nos Annabel ("já há muito tempo na casa dos 70"), sentada num banco da Washigton Square. Annabel esteve nas muitas sessões da Judson e gosta de se lembrar desses momentos como "aqueles em que [aprendeu] a ver o mundo".

Mesmo que a memória seja hoje "algo confusa", admite, "não é menos confusa do que muitas das coisas que ali [viveu]". Annabel lembra-se de uma performance de Carolee Schnnemann, Lateral Splay, "onde eles andavam nus e faziam coisas com tinta". Lateral Splay (1963) foi, com Meat Joy (1964), um dos trabalhos agora revistos no programa Judson Now. Na entrevista que deu à Time Out New York, a coreógrafa também se recorda de cores: "Lucinda Childs era amarelo e dourado, a Deborah Hay era rosada e com tons vermelhos, e a Ruth Emerson era o meu azul. Mas o problema é que muitas vezes as cores não apareciam. Não estavam disponíveis. Tinham um outro trabalho."

Rudy Perez, que, não tendo sido um dos fundadores, esteve presente praticamente desde o início, recordava na Movement Research o modo como a própria organização do grupo levou a uma fragmentação que só contribuiu para o mito: "Tornávamo-nos parte da Judson a convite de alguém que já estivesse envolvido. Mas, quando passou a ser um espaço completamente aberto, começou a desaparecer. E quando algumas dessas pessoas começaram a ocupar mais espaço, o grupo original não quis ter nada a ver com eles e foi por caminhos diferentes."

A curadora do Danspace acrescenta: "Tendo trabalhado com muitos destes coreógrafos nos últimos anos, aprendi que os artistas são seres cheios de contradições." Essas contradições eram visíveis no modo como trabalhavam e também no que faziam. E dá o exemplo de Lucinda Childs, que, em 1963, apresentou Pastime e que integrou o programa Judson Now: "Ela contou-me que de manhã faziam aulas de ballet e que à noite arrastavam objectos; não sei se eles pensavam que um dia seriam aquilo a que se chama instituições, ou se pensavam mais nas possibilidades artísticas e políticas do que faziam."

Pastime é um desses exemplos, revisto no Judson Now, onde o corpo reclinado de Childs, aparentemente imóvel, permitia que se começassem a ver na dança as mesmas desconstruções que, nas artes visuais, começavam a definir o minimalismo. Mas era, ao mesmo tempo, uma desconstrução de um movimento herdeiro da dança de Martha Graham, pioneira da dança contemporânea norte-americana e com quem Trisha Brown havia trabalhado.

Muita da dança feita pela Judson Dance vivia desse permanente diálogo com o passado, que muitos definiram como uma ruptura e uma posição anti-instituição. Num texto publicado na edição especial da Movement Research, o coreógrafo e bailarino Tere O"Connor, um dos muitos que começaram o movimento, escreve que o movimento, "se interpretado for a do âmbito das intenções originais dos artistas, pode levar a que a Judson seja confundida com um defensor de um modelo restritivo, não muito diferente do classicismo institucional contra o qual se batiam".

E é O"Connor quem primeiro dá o exemplo do No Manifesto, o célebre texto que Yvonne Rainner escreveu em 1965 para uma peça em particular, e que se tornou numa espécie de mantra para a interpretação do que se fazia na Judson Memorial Church. "Não ao espectáculo. Não ao virtuosismo. Não ao envolvimento do espectador e do intérprete. Não ao mover e a ser movido."

Para Judy Hussie-Taylor o que se celebra hoje é um momento "que não vai voltar a acontecer". Cinquenta anos depois, o que fez a dança nova-iorquina "não pode", sublinha, "não vai repetir-se". "São os artistas que criam as suas próprias condições", começa por explicar, mas depressa a realidade económica pesa sobre o seu discurso. "Nos anos 60 alugar um quarto no Soho custava 19 dólares", ao passo que "hoje não se consegue comer por esse valor".

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