Série Mar Português: Pode Portugal ser um imenso país do surf?

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Estão a ser feitos três documentários sobre McNamara na Nazaré e em preparação o campeonato do mundo de ondas grandes Foto: Rui Soares

"O investimento está feito. Os estádios estão aí - e movem-se", diz Tiago Pires, o único português entre os grandes do circuito mundial do surf. Os "estádios" são as ondas, que, em Portugal, têm uma diversidade excepcional, reconhecida por todos. Há uma estratégia nacional para o surf?

Portugal tem a maior (até agora) onda surfável do mundo, na Nazaré, com direito a referência no Guinness. Tem uma costa com ondas de excepcional qualidade e variedade. Tem, na Ericeira, uma das raras reservas mundiais de surf. E um número cada vez maior de praticantes (só a Federação Portuguesa de Surf tem 11 mil inscritos). Os estrangeiros chegam também cada vez mais, com as pranchas debaixo do braço. E as escolas multiplicam-se - são já perto de 150. De Verão e de Inverno, o mar português enche-se de figuras vestidas de negro a surfar as ondas.

O surf é um negócio que cresce - e tem potencial de crescer muito mais. Mas sabemos o que fazer com ele? Estava prevista a construção de sete Centros de Alto Rendimento para preparar atletas nesta modalidade. Só deverão avançar quatro. Tiago Pires, o "Saca", único português no circuito mundial, acha que mesmo assim são muitos. Fomos tentar perceber o que o país pode fazer com as suas ondas.

É preciso descer até à praia de Ribeira de Ilhas e esperar que termine a aula de surf, para conseguir falar com Ulisses Reis, surfista há muitas décadas e hoje proprietário de uma escola de surf, uma guest house e uma loja de aluguer de equipamento na Ericeira.

Sai da água, rodeado pelos alunos, muitos dos quais estrangeiros, carregando as suas pranchas, e enquanto despe o equipamento propõe uma conversa na sua guest house. Aí fala das mudanças a que assistiu nos últimos 34 anos na Ericeira. "Deixou de ser uma vila piscatória para se transformar numa cidade de surf, devido à qualidade das suas ondas", conta.

"Nós começámos com a escola no surf camp de Ribeira de Ilhas, e, no início, muito com os portugueses. Hoje temos um nível elevadíssimo de turistas noruegueses, franceses, espanhóis, finlandeses. Entre Junho e fins de Setembro, temos um turismo mais de famílias, de pessoas que vêm aprender. A partir de Setembro, já é um nível mais avançado, desde holandeses a alemães, que já querem ondas maiores e uma qualidade de surf superior."

De uma coisa, Ulisses não tem dúvidas: "A Ericeira é actualmente um dos melhores sítios para o surf da Europa". As pessoas que hoje vêm para aqui - e sobretudo agora, que a zona foi classificada como Reserva Mundial de Surf -, vêm sobretudo por causa das ondas. "Podem vir passear, mas vão ter sempre uma aula, alugar uma prancha, comprar alguma coisa nas lojas de surf. Já não é o "vamos ver o barquinho de pesca e os pescadores". Isso acabou."

Negócio pode render três mil milhões de euros por ano

Os estrangeiros já sabem que Portugal é um excelente destino para os surfistas: boas ondas, muita diversidade, praias a pouca distância umas das outras, o que permite que, se as condições não forem as ideais numa, se mude para outra. O número de escolas de surf também não tem parado de aumentar, e com elas as lojas e todo o negócio em torno deste desporto, que, diz um estudo elaborado em 2009 por Pedro Bicudo e Ana Horta, ambos do Instituto Superior Técnico, poderia render três mil milhões de euros por ano no sector do turismo.

E até surgiu, este ano, um festival de cinema de surf, o SAL, que, durante alguns dias de Junho, encheu o Cinema São Jorge, em Lisboa, de pranchas de surf e imagens de ondas. "Lisboa é uma capital europeia com proximidade do mar. Fazia todo o sentido que tivesse um festival como este", dizem os organizadores, Luís Nascimento e Ricardo Gonçalves, eles próprios surfistas há muitos anos. Num dos vídeos de apresentação do festival, um rapaz viaja por Lisboa, de eléctrico, e acaba no Cais das Colunas, no Terreiro do Paço, de prancha debaixo do braço. Em Julho, foi a vez do Portuguese Surf Film Festival, na Ericeira.

"Nova Iorque, Londres, Hamburgo, têm festivais de surf. Em Londres nem sequer há mar. Não fazia sentido não ter um em Portugal", até porque "o cinema de surf começa a ter imensa qualidade", tendo ultrapassado há muito "o simples documentário com pessoas a fazer surf". Começam até a surgir filmes nacionais, e os organizadores do SAL esperam que a existência do festival seja um incentivo para que no próximo ano apareçam mais.

Como é que Portugal está a aproveitar todo este potencial? Há surf por toda a costa portuguesa, mas há locais com estratégias definidas e que têm ganho maior visibilidade. A Ericeira é um deles - e a classificação como Reserva Mundial teve aí um grande peso. A Nazaré conseguiu tornar-se conhecida entre a comunidade mundial do surf, e não só, ao apresentar a maior onda surfável de sempre. Não foi por acaso, mas já contaremos esta história. E Peniche apresenta-se como a Capital da Onda, e continua a manter uma prova do circuito mundial de surf, a Rip Curl Pro Portugal (que começa no próximo dia 10 de Outubro e termina a 21).

Centros de Alto Rendimento ficam na gaveta

A nível nacional, foi também delineada uma estratégia que passava pela criação de sete Centros de Alto Rendimento (CAR) ao longo da costa portuguesa. Neste momento, explica ao PÚBLICO João Guilherme Bastos, presidente da Federação Portuguesa de Surf (FPS), "avançaram para obra quatro centros": Viana do Castelo, Aveiro, Nazaré e Peniche. E a tutela, o Instituto de Desporto de Portugal, diz que "os restantes não irão avançar".

O objectivo desta multiplicação, diz João Bastos, teve em conta a especificidade do surf. "As outras modalidades têm normalmente um único Centro de Alto Rendimento, mas com o surf pensou-se ter vários para aproveitar melhor o potencial do país". E como cada praia tem um tipo de ondas, a ideia é que os centros "funcionem em rede, canalizando as pessoas para o que é mais aconselhável para cada uma".

À parte disso, Portugal tem um atleta na elite mundial: Tiago Pires, mais conhecido como "Saca", chegou ao Circuito Mundial ASP, onde ocupa o 20.º lugar. Quando o encontramos, Tiago está numa pausa entre competições, e conversa, descontraído, na sua loja da marca QuickSilver, no centro da Ericeira. "Temos um país com uma costa litoral riquíssima em termos de ondas. Aqui a zona da Ericeira, o centro do país, está um bocadinho melhor apetrechada em termos de qualidade, mas existem ondas espectaculares mesmo na costa sul do Algarve."

O país já percebeu isso, acredita Tiago. "Penso que esse assunto está claro hoje. As autarquias passaram a olhar para o surf de maneira diferente. O campeonato mundial em Peniche, uma simples onda surfada na Nazaré, que percorreu o mundo inteiro, é uma visão mediática do nosso país que não se consegue de muitas outras maneiras. É um desporto feito no mar, não é preciso investir quase nada, o investimento está feito: os nossos estádios [as ondas] estão aí, e movem-se."

O que era importante neste momento, com tantas escolas e tantos alunos, era começar a regulamentar as coisas. "Em França, onde passo muito tempo, têm uma costa se calhar mais limitada do que a nossa, mas têm tudo já muito bem organizado, as escolas sabem perfeitamente como agir, respeitam-se todas e não há chatices. Em Portugal, isso tem que começar a acontecer. Vai chegar um momento em que vamos ser muitos." A boa notícia é que "a maior parte da costa ainda não está a ser usada" e quem quiser surfar sozinho ainda encontra sítios onde isso é possível.

O que lhe parece excessivo é o plano de criar sete centros de alto rendimento (a conversa com Tiago Pires decorreu antes de João Bastos ter declarado que só iriam avançar quatro). "Sei o percurso que é preciso fazer para chegar ao mais alto nível da alta competição, sei a costa que temos, as oportunidades que há em Portugal, o número de surfistas que temos e não acredito que os Centros de Alto Rendimento vão ajudar-nos a termos campeões daqui a dez ou 15 anos. É um projecto ambicioso de mais para o nível que temos".

Faria sentido na Austrália, um país "com uma tradição e uma história neste desporto que é única". Mas em Portugal "três são suficientes, ou mesmo um, em Peniche, que é o sítio que apresenta melhores condições para se começar a fazer surf". O problema, na perspectiva de Tiago Pires, é que "sabemos que Portugal não é uma das potências mundiais do surf e queremos trabalhar como se fôssemos uma". Um centro "bem gerido e bem trabalhado seria mais do que o suficiente para todos os atletas do país".

João Bastos, da FPS, esclarece que os centros não pretendem fazer concorrência às escolas de surf. "Os CAR existem para desenvolver a modalidade. Não são hotéis, são centros de excelência para o desporto. Não estamos à espera de ter uma enchente de cinco mil estrangeiros, e não podemos pensar que estamos a vender camas ou almoços". No entanto, se o desejarem, as escolas de surf poderão utilizar os equipamentos dos CAR.

Mas nos locais onde os CAR estão praticamente concluídos, como Peniche e a Nazaré, ainda existem dúvidas sobre como se vai fazer a gestão destes espaços. Cada um tenta apostar em especificidades próprias. Quando falamos com António José Correia, o presidente da Câmara de Peniche está muito entusiasmado com um evento que acabara de acontecer: uma prova de surf adaptado, para que pessoas com deficiência possam também andar nas ondas. A aposta em nichos como o do surf adaptado, ou outros, pode ajudar a que cada CAR defina o seu perfil e não surjam problemas de gestão entre eles.

Por outro lado, Peniche continua a apostar em força no campeonato mundial - a Rip Curl mantém o interesse na região, mas já anunciou que vai reduzir o seu nível de investimento, e perguntou se, nessas condições, Portugal continua a querer organizar a prova. António Correia está optimista. Para 2013, diz, há já bons sinais do envolvimento das marcas nacionais que têm sido parceiras, e a expectativa de que o Estado mantenha a contribuição de 250 mil euros (cerca de 20% do valor global da iniciativa) que teve este ano. Quanto a 2014, por enquanto, "é uma incógnita".

O Governo tem as atenções viradas para o mar. O que falta fazer na área do surf? "Falta um domínio fundamental: o do desporto escolar. Quando se fala no desígnio do mar, é muito importante que a prática de desportos náuticos seja valorizada no desporto escolar", defende o autarca. Depois disso é que faz sentido pensar na fase seguinte. "Passada a fase escolar, pensa-se como é que os jovens podem ser inseridos em programas de alto rendimento e que objectivos se podem traçar para Portugal ao nível dos desportos do mar. O plano do alto rendimento deve ser traçado, mas é preciso que antes disso se defina que recursos serão necessários. Tem que haver uma estratégia nacional, e estas estruturas têm que ser rentabilizadas."

Se foi o campeonato do mundo que deu visibilidade a Peniche, a estratégia agora é "abordar o mar de forma holística" - daí, por exemplo, um projecto com o Colégio Pedro Arrupe, promovendo Peniche Mar Pedagógico, com visitas aos estaleiros navais, à escola de renda de bilros e o contacto com o surf.

O dia da onda maior do que todas as outras

Nazaré é outro exemplo de uma estratégia a médio prazo que já teve um impacto internacional. "Queríamos colocar a Nazaré como spot internacional de surf", explica Luís Miguel Sousinha, presidente da Nazaré Qualifica, que lançou o projecto North Canyon. "Sabíamos que tínhamos ondas grandes que eram surfáveis, mas precisávamos de alguém que viesse complementar esse pensamento". Enviaram a um dos maiores surfistas mundiais, o havaiano Garret McNamara, a imagem de uma onda da Praia do Norte, e ele "à primeira tentativa aceitou logo o convite" de vir confirmar pessoalmente.

McNamara veio pela primeira vez em 2009 - em 2010, instalou-se e começou a surfar as ondas grandes. Até que chegou o dia da onda maior que todas as outras: 30 metros. "A onda do Garret foi claramente o momento de viragem. Mas nós e ele sempre achámos que ia acontecer." Como havia uma equipa de filmagens que acompanhava permanentemente o surfista, o momento foi captado em câmara. E assim, Garret McNamara surfou na Nazaré a maior onda de sempre, venceu o prémio de maior onda dos Billabong XXL e tornou-se recordista do Guinness. Nazaré estava no mapa do surf.

Mas a estratégia não está concluída. Houve uma série de iniciativas para mostrar que há também ondas mais pequenas, surfáveis por qualquer pessoa. Com o apoio da Zon, estão a ser feitos três documentários sobre McNamara na Nazaré, e está em preparação o campeonato do mundo de ondas grandes. E o Centro de Alto Rendimento ficará concluído em breve. A questão, também aqui, é saber como o rentabilizar. "Pensamos que deve haver uma estratégia de internacionalização, só assim os centros de alto rendimento serão sustentáveis. Não quer dizer que em Portugal não haja um número grande de surfistas, mas pensamos que é muito importante a internacionalização."

As ondas estão aí. E o mundo já sabe disso. Como vai o país gerir este potencial é que parece ser uma pergunta à espera de respostas.

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