Whit Stillman, um realizador fora de época

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Depois de 13 anos de ausência, uma das figuras mais singulares do cinema independente americano regressou em 2011 com Damsels in Distress, agora disponível em DVD. Paremos para olhar este universo sem par.

O universo de Whit Stillman (n. 1952) sempre foi visto como um "objecto estranho" - a nível nacional, basta observar que nenhuma das suas quatro longas-metragens se estreou nas nossas salas. Mas os últimos anos reanimaram o culto à volta da sua obra: a Criterion Collection editou em DVD Metropolitan (1990), a sua primeira longa, e Last Days of Disco (1998), o seu projecto pessoal mais ambicioso. Este último filme, um fracasso financeiro à escala "indie", terá sido responsável pelo afastamento do realizador, que demorou mais de uma década a encontrar financiamento para um novo projecto. A espera terminou no ano passado, com Damsels in Distress, obra que encerrou o Festival de Veneza em 2011 e que foi agora editada em DVD.

A sigla "HB - Urban Haute Bourgeoisie - é uma possível definição para o universo do cinema de Stillman: é um cinema que se ocupa de uma classe especial de jovens adultos entre os 18 e 35 anos, os sobreviventes de uma aristocracia urbana norte-americana. O termo surge logo no primeiro filme, Metropolitan, numa das muitas discussões das personagens sobre as categorias sociais em que os próprios, e outros, se encaixam. A etiqueta é rapidamente adoptada e difundida nas mais variadas conversas com estranhos, fora de casa dos pais, onde os jovens se reúnem todas as noites em encontros de debutantes: raparigas e rapazes ali se iniciam na vida social, como que reproduzindp um nostálgico fin-de-siècle.

Mas Metropolitan, tal como todos os filmes do realizador, retrata um período específico: deprimido com a sua severa vida universitária em Harvard (inspiração, mais tarde, para Damsels in Distress), Stillman introduziu-se num restrito círculo social em que a etiqueta, os vestidos de noite e a suprema eloquência de um discurso com aversão a modernismos e ao calão se impõem como princípios para uma socialização que prefere a elegância nas palavras, na pose e (pelo menos tenta-se) no trato. Mas como em todos os filmes de Stillman - retratos de uma outra época colada ao tempo em que são filmados -, Metropolitan é um objecto dos anos 90 sobre a passagem da década de 60 para a de 70, a idade da perda da inocência e da degradação da relação dos norte-americanos com o seu próprio país.

Autor dos guiões e dos diálogos de todos os seus filmes, Stillman viu o charme do seu humor (uma versão mais refinada da sofisticação popular de Woody Allen) ser reconhecido, em Metropolitan, com uma nomeação para o Óscar de melhor argumento original, e fez dessa marca o traço mais inimitável do seu trabalho. É ela, de resto, que transporta as suas obras para algo mais fundo do que a mera projecção de um meio social preppy (numa tradução imperfeita, "betinho") que pouco vive, na realidade, dos interesses intelectuais e emocionalmente complexos das personagens. Como chegou a dizer, o verdadeiro programa de Metropolitan era mostrar, mais do que pessoas cuja única ambição é vestirem-se bem, que ainda havia pessoas a quererem vestir-se como Fred Astaire, na vida e nos filmes, e a viverem, em espírito, num tempo passado.

Barcelona (1994), o seu segundo filme, foi um passo em frente: o realizador abandonou a sua juventude e um certo aparato para se inspirar nos anos passados na cidade catalã. Cinema independente oblige - Stillman vivia dos seus trabalhos em jornalismo e publicidade, tendo depois trabalhado, na década de 80, como vendedor e distribuidor de filmes. Inspirar-se-ia nesse período para criar o retrato de dois americanos a viver em Barcelona: as suas ardentes paixões, o choque cultural entre nacionalidades opostas e, sobretudo, a tensão política que sobressai das entrelinhas para se intrometer nas suas vidas.

O modo como observa - uma observação quase sociológica, sem dúvida moral - os princípios de cada personagem (no trabalho, no amor, na fé e no sexo) e as contradições entre estes e as suas decisões fez com que fosse visto, a partir daqui, como uma versão americana de Eric Rohmer. Mas, em Barcelona, a tensão da Guerra Fria oferece ainda uma oportunidade para construir uma crítica inteligente a um certo modo de vida americano - e uma certa atracção da Europa por ele, apesar dos ares de superioridade - através do cinismo e do humor de personagens que correm, na verdade, por uma egocêntrica satisfação sexual.



A álgebra do amor

Regressado aos EUA, Stillman decidiu concentrar-se numa paixão pessoal pouco dada a etiquetas: a música e a dança. É uma constante em todas as suas obras - e uma atenuante para as correntes de diálogos que roçam, conscientemente, a presunção -, e o seu cinema será talvez das poucas oportunidades para se ver pessoas a dançar, de facto, num filme: desajeitadamente, naturalmente, sem coreografias e sem complexos, dando espaço aos corpos para se aproximarem uns dos outros, depois do peso e da sedução das palavras que debitam. Stillman recebeu o seu maior orçamento para The Last Days of Disco (cerca de oito milhões de dólares, ainda assim bem longe de um tradicional orçamento de Hollywood) e fez dele a sua versão dos "anos Studio 54", algo que porventura terá afastado os espectadores das salas de cinema (mas que terá também reconvertido alguns "disco haters"). The Last Days of Disco é também o crescimento de Stillman como realizador e argumentista; os papéis femininos (interpretados por Chloë Sevigny, Kate Beckinsale ou Jennifer Beals) são de uma honestidade e de uma riqueza poucas vezes vistas no cinema americano contemporâneo. Para a história fica ainda a última cena, um dos genéricos finais mais memoráveis que já se viram (ou como a vida encontra a sua felicidade no início de uma "dance craze", com o mundo inteiro a dançar).

Treze anos depois, Damsels in Distress dava continuidade a vários dos cultos do realizador: uma linguagem precisa e elegante, uma apresentação refinada e cuidada, e o apreço pelo idealismo romântico (tanto mais puro quanto mais perverso), se bem que reconhecendo que there's no logic to the algebra of love. Stillman regressou para isso aos seus tempos da universidade, criando o retrato de quatro amigas que formam um grupo de auto-ajuda e anti-suicídio para os colegas, perdidos na ausência de referências do seu meio social e traumatizados por engates e relações estereotipadas. Entre a observação social e a fábula musical, Stillman vai buscar a tradição do cinema norte-americano dos anos 30 e 40 para a direcção de actores e a escrita, com Preston Sturges à cabeça (As Três Noites de Eva, 1941; Um Marido Rico, 1942), exemplo incontornável da comédia de costumes de subtexto sexual. Para as damsels (donzelas), a solução para a depressão passa por aulas de sapateado e músicas de Gershwin para se voar como Fred Astaire - o próprio título do filme remete para A Damsel in Distress (1937), de George Stevens, em que o actor e bailarino participa.

Ali, com Greta Gerwig no papel principal (o novo rosto feminino do cinema indie dos EUA), se encontra uma ligação entre Stillman e as influências que recebeu e que deixou ao longo destes 13 anos: vimo-la não há muito tempo em Greenberg (2010), de Noah Baumbach (colaborador de outro "filho" de Stillman, Wes Anderson) e vamos voltar a vê-la, ainda este mês, em Para Roma, Com Amor de Woody Allen. Ainda deslocado da sua época, Stillman regressou como as suas personagens, recorrendo um pouco à fantasia para se apaixonar, um pouco à filosofia para nos seduzir.

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