Criôlo

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B Fachada é um caso curioso: as pessoas amam ou odeiam-lhe a obra, sendo que por vezes parecem confundi-la com o homem: “Ainda não o ouvi e já o detesto porque usa calças cor-de-rosa”, lê-se amiúde na net; as mesmas pessoas que escrevem isto são capazes de dizer bem da pinta de Santigold ou M.I.A.

A excessiva pessoalização com que o público encara a obra de Fachada cria demasiado ruído, absolutiza as opiniões, por isso aqui vai um pouco de ambiguidade: não tenho qualquer opinião sobre B Fachada enquanto pessoa e a minha apreciação da sua criação muda disco a disco: a "Viola Braguesa" e "Há Festa na Moradia", os EPs, tirava uma canção de cada, mas a "Um Fim-de-Semana no Pónei Dourado", "B Fachada" e "B Fachada É Para Meninos" cortava - à vontade - duas ou três a cada. Era capaz de dizer que Fachada é antes de mais um fazedor de EPs longos incapaz de atingir a perfeição nos LPs. A dicção apraz-me mas ao vivo incomodam-me os proto-vibratos; as letras costumam ser muito boas, embora aqui e ali haja rimas inconsequentes e um excesso de narcisismo; o lo-fi, que imagino ter sido mais uma necessidade que uma opção, é quase sempre funcional. Quando ouvi pela primeira vez "Criôlo" estava disposto a travar batalhas em sua defesa; é como se Fachada tivesse feito passar o universo exótico de "Há Festa na Moradia" por um filtro afro e no fim burilasse as melodias com uma lima de ouro: é mexido, melódico, provocador, apretalhado e possui aquela graça difícil de alcançar que consiste em usar o que as pessoas consideram parolo e sair por cima. Uns dias de audições consecutivas permitem olhar "Criôlo" com outra frieza e defendê-lo apesar dos seus defeitos. Tem apenas oito canções, quase todas marcadas por batidas sintetizadas que ora devem à música africana dos anos 1980 ora parecem saídas de maus vídeos da RTP África de hoje. A faixa de abertura, "Afro-xula", é, a esse titulo, exemplar: cada um daqueles sons isolados é de fugir, mas Fachada consegue equilibrar o beat africano com a sua ondulação melódica - e que neste disco se revela particularmente afinada. "Afro-xula" é aquilo a que se chama um single: uma canção com princípio, meio, fim e refrão imaculado. Ele canta “O Aníbal a comer (...) toda a gente sem poder e ninguém a trabalhar” e isto terá certamente um significado político, mas para ser honesto não arrisco qualquer interpretação. Não é o único single do disco: 98, com os seus sintetizadores em stacatto e os coros finais tem ser incluída na lista; É normal, que alberga o beat e o sintetizador afro mais parolinhos do século XXI (além de um gemido porno, da frase “Muita mama e boa foda é excepcional” e de um quiriquiriquiqui que goza com a suposta herança de Zeca), não pode ficar de fora; mas é em "Quem quer fumar com o B Fachada" e "Tendinite" que Fachada saca cartas da manga que não imaginávamos que tivesse. "Tendinite", um funaná plástico sobre um homem que espera a sua vez para tomar a vizinha promíscua (e, raios, às vezes este rapaz fala mesmo a língua das gentes comuns), tem a batida e entrega vocal mais eficazes do disco - e é um regalo de pista de dança. "Quem quer fumar com o B Fachada" é uma espécie de reggae sintetizado que paira entre Manu Chao e Serge Gainsbourg; é João Coração ganzado (o maior elogio que se pode fazer a alguém): tem três partes melódicas diferentes e inventa uma linguagem tuga que desconhecíamos (sintetizadores planantes em contra-tempo numa canção sobre ganza? A sério?). Há mais três canções no disco: "Como calha" funciona como descanso após "Afro-xula", enquanto "Carlos T" é uma pérola de pop de brincadeira: o ataque ao órgão parece o de um puto de cinco anos, mas depois há espamos de sintetizadores espalhafatosos e uma viragem improvável para um refrão exímio. "Baladona" é, talvez, a canção que está a mais (a menos single), mas como fecha o disco acaba por cumprir a sua função - e com o tempo afeiçoei-me a ela, confesso, e já espero ouvi-la ali a cada audição. Pode acusar-se Fachada de pilhar num género que não é seu, mas a) os géneros não são de ninguém excepto que quem os apanhar; b) não há música africana em todas as faixas. Quando Fachada vai a África rouba, acima de tudo, no funaná sintetizado, uma linguagem que vem em evolução desde a década de 1980 (mas na altura os brancos chamavam a isto afro-pop) e quem tem miríades de variações; ele adapta essas batidas e o som desses sintetizadores ao seu modo próprio de entregar cada sílaba e de dividir as orações e isso é suficiente para sair do universo do plágio e cair em cheio no alvo da pop. É o melhor disco de Fachada, mas mais importante que isso: é como afogar o corpo em água gelada e ao vir ao de cima sentir electricidade na espinha, é como afundar a cara num par de ananazes e ficar com sumo a escorrer pela boca. Esqueçam que o rapaz usa camisolas com estampados de gatinhos; borrifem-se para a habitual acusação de que só os hipsters gostam do moço (quem vos diz isto é um conservador que aprecia camisas); limitem-se ao que interessa: as canções. E se no fim não encontrarem aqui um melodista de excepção, então não sei que vos diga.

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