Heróis, anti-semitas e nazis: a história que os húngaros não conseguem ler

Foto
A estátua de madeira inaugurada na terra natal do almirante Miklós Horthy Laszlo Balogh/Reuters

O regente que se aliou a Hitler e enviou milhares de judeus para Auschwitz é visto como herói, escritores nazis são inseridos no currículo escolar. A Hungria tem dificuldade em ler o seu passado

A Hungria está a passar por uma onda de revivalismo do almirante Miklós Horthy, que governou o país entre as duas guerras mundiais, pondo em prática leis anti-semitas, e que acabou por o conduzir para uma aliança com Adolf Hitler. Quem o recupera é a extrema-direita, uma força em crescimento. Mas o Governo de direita, que tem usado e abusado dos símbolos nacionais, não objecta à vaga de homenagens e estátuas e placas comemorativas, ao mesmo tempo que figuras importantes do partido do Governo se envolvem na reabilitação de um escritor que tinha claras simpatias para com o nazismo, Jozsef Nyiro.

O almirante Horthy é uma figura polémica, e que ainda hoje divide a Hungria. Figura autoritária, ascendeu ao poder com poderes de rei mas sem ser rei - como regente - na contra-revolução após o golpe comunista de Béla Kun em 1919. Entre a União Soviética de Estaline e a Alemanha de Hitler, ele aliou-se a Hitler. Em troca, recebeu a garantia de que seriam restaurados alguns dos territórios que a Hungria tinha perdido após o Tratado de Trianon, o acordo de paz assinado pelos Aliados com a Hungria no fim da I Guerra Mundial - um trauma histórico que gerou um irredentismo que ainda hoje é usado como argumento político, precisamente pelo Governo de Victor Orbán.

Antes da II Guerra, Miklós Horthy, que definia o seu regime como "contra-revolucionário, cristão e nacional", pôs em prática três séries de leis anti-semitas, a partir de 1938, as primeiras que entraram em vigor na Europa ocidental, limitando os direitos da população de religião judaica. Instituiu um numerus clausus nas universidades para os judeus, restringiu-lhes os direitos civis, profissionais e económicos e finalmente legislação racial inspirada nas Leis de Nuremberga alemãs, que pretendiam defender a "pureza" do sangue ariano.

Mas se Horthy permitiu que 450 mil judeus rurais fossem para os campos de concentração - estes ele considerava "parasitas" -, tentou evitar que os judeus de Budapeste, uma elite mais endinheirada e culta, fossem enviados para Auschwitz. Mas Horthy foi posto de lado quando o Exército alemão entrou em Budapeste, e o poder foi colocado nas mãos de Ferénc Szalasi, líder do Partido da Cruz de Ferro, cujas ideias coincidiam com as dos nazis.

O papel do Jobbik

Hoje, é o partido de extrema-direita Jobbik o principal defensor da memória de Horthy. É um partido que está a crescer, sobretudo entre os jovens, ligados através da Internet, que ignoram os media tal como os media fazem o seu melhor para os ignorar a eles. Se a televisão faz os possíveis para não os convidar, eles próprios têm portais noticiosos, com notícias televisionadas e transmissão de discursos do seu líder de 33 anos, Gabor Vorna, em directo. Mas estão representados no Parlamento, e as últimas sondagens dão-lhes 9% das intenções de voto.

O culto a Horthy, considerado como um herói nacional, já vem de longe, mas nos últimos tempos veio para o topo da actualidade.

Houve autarcas que por sugestão de um vereador do Jobbik tomaram a decisão polémica de rebaptizar com o nome do almirante a praça da Liberdade de Gyömrö, uma cidade de 16 mil habitantes a menos de 20 quilómetros de Budapeste, um baile foi organizado para arranjar fundos para construir uma grande estátua de Horthy e uma estátua de madeira foi erguida na cidade natal do governante, Csokako, recorda o site Hungarian Spectrum.

Enquanto isto se passa, o Governo do Fidesz, de direita nacionalista, agarrou numa outra bandeira de duvidoso bom senso: está a pressionar para que sejam enterrados na Transilvânia romena os restos do escritor József Nyírö, que chegou a ser procurado como criminoso de guerra, pelas suas declaradas simpatias para com o regime nazi. Quer fazê-lo a pedido de um partido da minoria húngara na Roménia, e contra a vontade das autoridades romenas, e nesta demanda está envolvido o presidente da Assembleia Nacional, László Kövér, e o secretário de Estado da Cultura, Géza Szöcs.

Os dois dirigentes estiveram num serviço religioso realizado na Páscoa em Odorheiu Secuiesc, a cidade natal de Nyírö, que era um ideólogo do regime de Horthy e que se refugiou na Espanha de Franco. Também lá estavam líderes do Jobbik, inconformados por não poderem enterrar a urna do escritor.

O presidente da Assembleia acusou as autoridades romenas de serem "paranóicas, histéricas" e bárbaras", e garantiu que enterrarão Nyírö seja como for.

Elie Wiesel diz basta

O escritor tem na sua obra passagens como esta: "As nações da Europa estão a descobrir-se umas às outras e estão a aproximar-se em nome da paz, da alma e do renascimento espiritual. Apoio este empreendimento com todo o meu coração e a minha alma. Viva Adolf Hitler! Viva a Alemanha!" E Nyírö foi um dos autores fascistas incluídos no novo currículo escolar, tornando-se as suas obras de leitura obrigatória - uma medida do Governo e não do Jobbik.

Este tipo de acções levaram a enviada especial dos Estados Unidos para monitorizar e combater o anti-semitismo, Hannah Rosenthal, a emitir um alerta: "A recente reabilitação de figuras do passado da Hungria marcadas pelos seus contributos fascistas e anti-semitas ajuda a [criar] um clima de aceitação de uma ideologia extremista, na qual o racismo, o anti-semitismo e outras formas de intolerância podem florescer."

Elie Wiesel, o sobrevivente do Holocausto que se tornou caçador de carrascos nazis e ganhou um Nobel da Paz, anunciou na semana passada que a reabilitação de Nyírö é de mais para ele. Escreveu ao presidente do Parlamento dizendo-lhe que "repudiava" a Grande Cruz da República Húngara, que tinha recebido em 2004. "Estou inquieto e escandalizado por ver que participou, com o secretário de Estado da Cultura e o presidente do Jobbik, na cerimónia para o escritor József Nyírö, que foi membro da direcção do Partido Cruz de Ferro", escreve Wiesel, de 83 anos.

"Está a tornar-se cada vez mais claro que as autoridades húngaras estão a encorajar o branqueamento de episódios trágicos e criminosos do passado da Hungria, como o envolvimento dos governos do tempo da II Guerra na deportação e assassínio de centenas de milhares dos seus cidadãos judeus", escreveu o Nobel da Paz.

Sugerir correcção
Comentar