Festivais em tempos de crise

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81 mil espectadores para Bruce Springsteen Nuno Ferreira Santos

Que em tempos de crise, um evento de preço considerável como o Rock in Rio tenha imensa adesão de público e um acontecimento gratuito como Serralves em Festa tenha decréscimo significativo eis o não pode deixar de ser tópico de reflexão

Nos dois últimos fins-de-semana ocorreram sucessivamente dois mega festivais, o Rock in Rio Lisboa primeiro, o Optimus Primavera Sound no Porto depois.

O sucesso dos eventos foi impressionante: 346 mil espectadores para o Rock in Rio, com destaque para os 81 mil no último dia, com Bruce Springsteen, cerca de 70 mil para o Primavera Sound, sendo que neste caso, mais de 50 por cento dos espectadores terão vindo do estrangeiro, oriundos de mais de 40 países, entre os quais Espanha, Suécia, França, Itália, Alemanha e até Argentina, Brasil e Estados Unidos!

Um tal sucesso é por si só um acontecimento saliente, para mais na aguda de crise económica e social em que Portugal se encontra, sobretudo com os alarmantes números do desemprego, em especial dos jovens.

A 28-08-2011, no final da época dos festivais de Verão, vinha no PÚBLICO um artigo de Lucinda Canelas e Mário Lopes de sintomático título, "A crise chegou a todos menos aos festivais": "Em 2011, ano sem o muito mediático Rock In Rio, os festivais encheram-se de público, prosseguindo a tendência de curva ascendente. Dizem-no os números e dizem-nos os organizadores. A crise, garantem, não prejudicou e a explicação estará no preço dos bilhetes, mais competitivos do que os praticados em sala (o que atrai o público nacional) e inferiores em relação aos praticados nos festivais em Inglaterra, Estados Unidos ou Espanha, o que se reflecte na crescente afluência de público estrangeiro".

Mas, apesar de tudo, 2012 a crise agudizou-se, com uma taxa de desemprego de 15,2 por cento que chega a uns assustadores 36,2 por cento no que concerne aos jovens entre os 15 e os 24 anos, e com uma parcela significativa da população privada do 13º mês, bem como do 14º. Mais: por ironia, no último dia do Rock in Rio, 3 de Junho, o de Springsteen e dos 81 mil espectadores, o destaque do PÚBLICO era um trabalho alarmante sobre o trabalho precário e o desemprego entre os jovens. ?Acrescente-se que a entrada para um dia do Rock in Rio custava 61€ (sem falar já dos 240€ do bilhete VIP), e ainda outro facto: esse segundo fim-de-semana do Festival coincidiu com outro evento de relevo, no Porto, Serralves em Festa. Se o evento, que começou com 42.286 entradas em 2004, foi subindo a níveis impressionantes, até aos 102.507 visitantes em 2010, verifica-se agora um acentuado decréscimo, com 98.122 no ano passado e 84.835 neste. A quebra em 2011 foi atribuída à chuva, mas agora, e tanto quanto me pude aperceber, apenas houve uma tarde também de chuva, e no entanto o decréscimo foi bastante significativo. Que nestes tempos de dura crise um evento de preço considerável (mesmo que em termos relativos, e no binómio entre preço e quantidade de concertos, seja comparativamente baixo) como o Rock in Rio Lisboa tenha uma imensa adesão de público, enquanto um acontecimento de relevo cultural, muito diversificado e gratuito, como Serralves em Festa tenho um decréscimo significativo, eis o que não pode deixar de ser tópico de reflexão.

Perante estes dados, incorre-se facilmente em leituras simplistas, como a do panem et circencis, do pão e do circo, dos espectáculos para distrair as "massas". Por outro lado, tem sido defendido que é em períodos de crise que mais necessários são o "refúgio" de acontecimentos culturais, e que é significativo que na situação presente de crise geral na Europa a cultura seja o raro caso de um sector economicamente florescente, representando já 4,5 por cento do PIB, com 8,5 milhões de empregos, e área que em breve, com o programa "Europa Criativa", terá um reforço de 37 por cento do orçamento comunitário, em 2014-20 - e estes já são dados a atender.

Mas não se pode também escamotear que persistem fortes preconceitos ideológicos em relação aos consumos culturais de massas. À direita, há a tendência para os encarar como "degenerescência" do que seria a "cultura autêntica" e mesmo como "depravação" dos costumes, tradição prosseguida por ensaístas conservadores como Allan Bloom em A Cultura Inculta ou mesmo Harold Bloom em O Cânone Ocidental. À esquerda é clássica a "denúncia" da "alienação", da "reificação, fetichização e mercantilização" dos objectos culturais, das "indústrias culturais" como Adorno e Horkheimer analisaram em A Dialética do Iluminismo, de resto, e sobretudo no que diz respeito ao primeiro, numa perspectiva altiva, elitistista e mesmo conservadora e classista, do "classismo" de intelectuais perante as "culturas de massas".

Porque a análise não será profícua nessa perspectiva "altiva", entendo que devo clarificar a minha própria posição: se a esmagadora maioria da música pop/rock me parece indigente, quando Bruce Springsteen foi o primeiro artista a ser anunciado para o Rock in Rio cheguei a equacionar estrear-me nessas andanças (em 30 anos o único mega-concerto de rock a que assisti foi o de Springsteen no Estádio de Alvalade em 1993), e tenho grande admiração por uma cantora e compositora que chegou a estar anunciada para o Primavera Sound, Bjork. Assim, não creio ter um preconceito de princípio que inevitavelmente enquinaria esta reflexão.

Ora, há desde logo um fenómeno que é da maior importância considerar. Se desde os anos 50, com o aparecimento das "culturas da juventude", o rock foi uma das suas maiores manifestações, uma das suas características fulcrais, a de ser do domínio do efémero, vem a ser consideravelmente matizada. Hoje, e esse é um facto cultural da maior relevância, o pop/rock tem o seu "panteão clássico", tal como na música erudita há um cânone clássico. Atravessando décadas, diversos músicos tornaram-se lendas vivas. Mais: desde há uns anos há uma persistente tendência para a re-união, o reencontro de antigos grupos, dos Stooges de Iggy Pop aos Police, e agora até mesmo aos Beach Boys, a confirmar-se a digressão do grupo, incluindo o seu elemento mais importante, Brian Wilson. Casos há em que isso pode ser patético, como os The Who, no Pavilhão Atlântico há cinco anos, cantando o hino My Generation ("I hope I die/ before I get older"), com um Pete Townshend então com 62 anos!

Para citar os casos mais salientes e que actuaram em Portugal em anos recentes, Leonard Cohen (que voltará em breve), Bob Dylan e Neil Young, nasceram respectivamente em 1937, 1941 e 1945. O que era uma "cultura de juventude" transformou-se num fenómeno intergeracional, de resto acentuado por uma "indústria da nostalgia" que tem de ser tida em consideração, e esse é um factor relevante à compreensão dos 81 mil espectadores para Springsteen - mesmo pagando 61€ por pessoa, enquanto no Porto a gratuitidade não impedia a quebra do afluxo à Festa de Serralves.

Mas o Rock in Rio foi também um case study em termos mediáticos, com a inacreditável promoção da SIC Notícias e da SIC Radical, e mesmo da Rádio Renascença, Emissora Católica Portuguesa como há que lembrar. Ouvindo por acaso a segunda, dei-me conta de discursos como o de esse factor intergeracional representar uma "valorização da família"(!) ou de o festival ter sido "uma resposta positiva à crise que o país atravessa", de resto motivo retomado também pelos organizadores, com o presidente Roberto Medina a dar os "parabéns que esta multidão é o sinal de que o povo português dá a volta por cima", e isso são já discursos promocionais e ideológicos inaceitáveis.

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