O diplomata, o irresistível e o islamista burocrata disputam voto dos egípcios

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Militares vigiam local de voto no Cairo Foto: Suhaib Salem/Reuters

É mais uma etapa do conturbado processo de transição do mais importante país árabe. Quando for eleito, provavelmente em Junho, o vencedor não vai sequer conhecer os seus poderes.

O islamista progressista Abdel Moneim Aboul Fotouh é apoiado por figuras tão diferentes como os líderes do partido radical salafista Nour e Wael Ghonim, o activista que criou a página de Facebook "Somos todos Khaled Said", fundamental na mobilização para os protestos que levaram à queda de Hosni Mubarak, em 2011. Mohamed Morsi oferece um "projecto de renascimento" elaborado a partir do islão para devolver o Egipto à sua grandeza. Amr Moussa reúne o apoio de quase todos os que querem garantir que os islamistas não vão juntar ao poder legislativo o poder executivo.

As urnas abrem hoje para a primeira volta das presidenciais egípcias e dois destes três homens irão com toda a probabilidade disputar a segunda volta. Se nenhum candidato conseguir mais do que 50%, os egípcios voltam às urnas a 16 de Junho. Todos os analistas e as poucas sondagens apontam para uma desforra entre Moussa e um dos islamistas.

É possível que Morsi, o candidato da Irmandade Muçulmana e do seu Partido Justiça e Liberdade (47% nas legislativas de Novembro), não chegue à segunda ronda - pelo menos uma sondagem coloca-o em quarto, atrás de Moussa, de Aboul Fotouh e de Ahmed Shafiq, o candidato da velha guarda, nomeado primeiro-ministro por Mubarak já durante a revolta. Mas a Irmandade "entra em mobilização total no dia das eleições", avisa Shadi Hamid, do centro de Doha do think tank Brookings, ouvido pelo Washington Post.

Sondagens à parte, ninguém acredita que Morsi não seja pelo menos um dos três mais votados. Mas não deixa de ser o candidato "suplente" da Irmandade (a Comissão Eleitoral excluiu a primeira escolha, o popular empresário Khairat El-Shater). Tal como não deixa de ser irónico que o único movimento de massas do país - e o mais antigo e bem organizado movimento islamista da região - se arrisque a ver o seu candidato não chegar à segunda volta.

De acordo com uma sondagem publicada na semana passada pelo jornal Al-Masry al-Youm, 37% dos eleitores estavam indecisos. Este será o facto mais relevante dos inquéritos, num país onde as sondagens nunca foram testadas. Mubarak, o "faraó" que passou três décadas no poder, era confirmado em referendos onde à frente do seu nome se podia escrever "sim" ou "não".

Morsi é visto como um homem do aparelho da Irmandade, um burocrata sem chama. Nalguns comícios justificou a candidatura com o medo do Dia do Juízo Final. "Preocupa-me que Deus me pergunte: "O que é que fizeste quando viste que a nação precisava de sacrifício?""

O partido insiste em apresentá-lo como "único candidato islamista" da corrida e não houve comícios sem referências ao Corão ou pausas para as orações. Mas isso não transforma Morsi nem o Justiça e Liberdade em defensores de um islão radical. O problema é que, como outros candidatos islamistas, se viu obrigado a cortejar o eleitorado dos extremistas do Partido Nour, que surpreendeu com os 29% nas legislativas.

Aboul Fotouh tem o apoio oficial do Nour (com o seu candidato excluído, o grupo preferiu apostar na derrota da Irmandade, que vê como único rival). Morsi teve em algumas acções de campanha a presença do líder religioso Safwat el-Hagazi, que subiu ao palco para apelar à criação de um super-Estado muçulmano com Jerusalém como capital.

Nascido numa aldeia do Delta do Nilo, Morsi, de 60 anos, é filho de agricultores, mas estudou Engenharia na Universidade do Cairo e mudou-se a seguir para a Califórnia, onde completou os estudos.

Se as dúvidas sobre os resultados são muitas, um facto parece certo: para Morsi passar à segunda volta tem de deixar pelo caminho o médico Aboul Fotouh. Este antigo membro da Irmandade (foi um dos seus líderes durante 25 anos) é o candidato há mais tempo em campanha - o corte aconteceu quando decidiu concorrer à presidência, numa fase em que a Irmandade garantia que não apresentaria candidato (para não assustar os EUA e Israel).

O exemplo de Erdogan

Descrevendo-se como islamista progressista ou liberal, Aboul Fotouh, da mesma idade que Morsi, atraiu o apoio de muitos jovens liberais, dos salafistas e "pode atrair algum voto secular dos que não têm estômago para votar em Moussa (que, apesar de não ser próximo de Mubarak, ainda é um resquício do velho regime)", escreve a analista Marina Ottaway (do Carnegie Endowment for International Peace).

Num cenário que muitos egípcios vêem como polarizado entre islamistas e representantes da ditadura, Aboul Fotouh surge como "uma figura com mais nuances", escreve a Newsweek, num perfil onde lhe chama "o islamista irresistível". A revista sublinha que rejeita iniciativas para proibir a venda de álcool ou impor o véu, defendendo "uma democracia islâmica dirigida por tecnocratas e não por ideólogos", à imagem do turco Recep Tayyip Erdogan.

Moussa tem presença quase garantida na segunda volta. O seu trunfo é ser muito conhecido - foi chefe da Liga Árabe de 2001 a 2011 - e ter ganho popularidade com a postura dura em relação a Israel quando foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Mubarak, na década anterior.

Muitos egípcios podem preferir um "valor seguro" para ajudar o país a sair do confuso e difícil processo de transição que se abriu com a queda de Mubarak. "O país está numa grande crise. E uma grande crise não se resolve com um Presidente que vá por aí a perguntar a toda a gente "O que é que faço sobre isto? O que faço sobre aquilo?", acumulando experiência pelo caminho"", defendeu Moussa, de 75 anos, na campanha.

Tal como Ahmed Shafiq, o ex-primeiro-ministro que deverá conquistar os votos dos que se queixam da falta de tranquilidade que o pós-revolta trouxe, há outro candidato que tira votos a Moussa: Hamdeen Sahaby, nacionalista de esquerda que se apresenta como "Presidente dos pobres" e promete "levar a revolução ao poder".

Os jovens revolucionários dividem-se entre Aboul Fotouh, Sahaby e o apelo ao boicote. Como Mohammed ElBaradei, em tempos a grande esperança da oposição a Mubarak, não acreditam que valha a pena votar enquanto o Exército estiver no poder e a Constituição não for revista por uma Assembleia Constituinte.

Os militares prometem transferir as rédeas do país para os civis eleitos em Julho. Nem todos acreditam que o farão. E até lá deverão emendar a Constituição para diminuir os poderes do Presidente e aumentar a sua própria autoridade. Até Julho podem acontecer muitas surpresas, incluindo uma grande parte dos egípcios não aceitar os resultados das presidenciais e regressarem os protestos de massas à Praça Tahrir do Cairo.

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