O intruso e a árvore da morte

Andrea Arnold revisita o clássico de Emily Brontë de forma ousada, confirmando-a como ponta de lança no actual cinema britânico

É legítimo dizer que nunca vimos o romance clássico de Emily Brontë sobre a paixão amaldiçoada entre Catherine Earnshaw e Heathcliff, o órfão recolhido pelo seu pai, como a britânica Andrea Arnold o filma na sua terceira longa-metragem: como uma história de desejo animal, impetuoso, entre dois seres que se compreendem sem precisar de palavras, pelo meio de uma natureza tempestuosa.


E esta reinvenção admiravelmente ousada do livro - que paradoxalmente é também de uma curiosa fidelidade ao barroquismo arrebatado do romance, mas já lá vamos - confirma a cineasta como uma das mais notáveis revelações do cinema inglês recente. O excelente Aquário (2009) já mostrava a sua capacidade de criar um percurso inegavelmente pessoal pelo meio das convenções de uma cinematografia perita no “realismo social” e na “reconstituição de época”. Arnold não está interessada em nada disso e o seu Monte dos Vendavais, fotografado ao mesmo tempo à flor da pele e de modo brutalmente franco pelo extraordinário Robbie Ryan nas paisagens singularmente plásticas do Yorkshire, deixa para trás essas convenções com uma convicção quase radical.

Faz, aliás, sentido falar do filme como uma versão telúrica e escura da Árvore da Vida de Terrence Malick, trágica e arrebatada onde Malick era lírico e luminoso. No Yorkshire de Arnold não há sequer esperança de graça e a natureza é tão deslumbrante quanto funesta, como uma espécie de Árvore da Morte que sugere uma penitência inescapável a cumprir, o castigo por um pecado primordial e quase inexplicável. O golpe de mestre de Arnold e da sua co-argumentista Olivia Hetreed é regressar ao romance de Brontë para sublinhar a estranheza alienígena de Heathcliff, descrito na página como alguém de tez escura; ao escolher actores negros para o papel, Arnold torna-o no pecado original, ao mesmo sedutor e perigoso, violento e doce. Ameaça e desejo mesclam-se na utilização da raça como sinónimo do outro, tornando o drama romântico numa meditação sobre os próprios atavismos imperiais britânicos (Catherine parece ser a única que vê Heathcliff como uma pessoa e não o condena à partida pela sua pele) e sobre a ideia da luta de classes que subjaz a todo o cinema inglês.

Mas Arnold lança igualmente a ideia de que os dois amantes não passam de adolescentes forçados a crescer demasiado depressa para enfrentar um mundo que lhes exige uma carapaça indestrutível. E fazer de Heathcliff um “outro” torna também a história num pulsional drama de vingança, com este “intruso” como um anjo vingador cuja simples presença desencadeia um frenesi sensorial que reduz todos os participantes aos seus impulsos mais primais e irredutíveis.

Seja por onde se quiser olhar para O Monte dos Vendavais, este é daqueles filmes assombrosos que dá pano para mangas e nunca mais se esgota. É dos grandes objectos cinematográficos do ano para nós.

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