Máscaras sem cor

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Desde o primeiro ensaio - há meses - Faz escuro nos olhos tornou-se central na vida dos seus actores – Zia Soares; Daniel Martinho; Margarida Bento; Giovanni Lourenço e Matamba Joaquim Pauliana Valente Pimentel

"Faz escuro nos olhos" junta o encenador Rogério de Carvalho e cinco actores. É apenas um primeiro passo para quem quer alcançar um teatro em que a cor da pele seja invisível. O palco é deles, desde ontem e até amanhã, no Instituto Francês de Portugal, em Lisboa

O Instituto Francês de Portugal, em Lisboa, aceitou a aposta e cedeu o palco. Cinco actores, quase todos negros, juntam-se numa peça que, além de existir como espectáculo, surge como um (quase) manifesto, ao convocar um sonho realizável mas que alguns verão como uma utopia, quando até o teatro se rege pelas leis do mercado.

Este é um projecto sem orçamento, para fazer um teatro sem cor. Partiu da Associação Cultural Griot, que nasceu em 2009 e agora apresenta o seu segundo espectáculo Faz escuro nos olhos, desde ontem e até amanhã nesta sala no centro de Lisboa.

As leis do mercado ficam, por momentos, de fora. O que conta é o que cada um está disposto a contribuir para o sonho, sem receber dinheiro ou aceitar discriminações positivas.

Desde o primeiro ensaio, há meses, Faz escuro nos olhos tornou-se central na vida dos seus actores - Zia Soares, Daniel Martinho, Margarida Bento, Giovanni Lourenço e Matamba Joaquim.

No final, talvez, parte da venda dos bilhetes pagará parte das dívidas dos fazedores deste sonho, à altura de um grande nome do teatro português: o encenador Rogério de Carvalho (n. 1936), professor na Academia Contemporânea do Espectáculo, no Porto, vencedor de prémios de encenação e presença habitual do Teatro Municipal de Almada ou o Teatro Nacional São João (TNSJ) no Porto, entre muitos outros.

Foi à sua porta que foram bater. "Queremos falar contigo mas não temos dinheiro." Hoje, é o próprio a querer dedicar mais tempo da sua vida a este projecto com o qual se identifica. "Faz escuro nos olhos" é apenas um primeiro passo no caminho que a Associação Cultural Griot tenciona percorrer.

No palco, violência de corpos, que parece materializar uma dolorosa memória, um remorso, uma culpa. Não se sabe de onde vem: se de uma guerra (nos Balcãs ou em África)? Ou de um confronto sem armas, feito de palavras cruas ou do silêncio nascido de uma impossibilidade.

A peça resulta de uma colagem de textos de vários autores (Sergi Belbel, Virgínia Wolf, Ingmar Bergman, Manuel Rui, Freud) e junta excertos de improvisações lançadas nos primeiros ensaios com Rogério de Carvalho, para quem "a palavra sai em torrentes".

Quem já trabalhou com Rogério de Carvalho sabe que o encenador com mais anos de Portugal do que do seu país, Angola, é um virtuoso na criação de ambientes. Deste decano do teatro português, também se diz que tem uma feliz vocação para juntar o seu mundo ao dos textos, e que quando mergulha neles facilmente lhes descobre a alma.

Em 2006, a convite de Ricardo Pais, para encenar no TNSJ Os Negros, escrita por Jean Genet para ser representada por negros, Rogério juntou um elenco de actores africanos (a viver em Portugal ou nos países lusófonos de África), vinte anos depois de o ter feito, no Teatro do Século, apenas com brancos, por não dispor de actores negros. Hoje, considera: "O teatro em Portugal já abriu, mas não o suficiente para se aceitar que negros desempenhem papéis independentemente de serem personagens negras ou brancas."

De dentro para dentro

O dinheiro não era mesmo importante para os associados da Griot e os actores de Faz escuro nos olhos. O sonho sim: criar uma ponte entre Lisboa e o mundo africano que fervilha dentro dela; imaginar como possível uma nova corrente de expressão teatral, em Portugal, inspirada na negritude, mas aberta a artistas negros e brancos, à imagem do que se vê em França ou no trabalho de encenadores do Reino Unido. "A França teve a sua própria política de teatro em relação a actores negros. Criaram intercâmbios com o Senegal ou a Guiné-Conacri", diz Rogério de Carvalho. "Vamos a Paris e encontramos actores negros inseridos no teatro, no cinema, na televisão." Não se distinguem dos outros e fazem qualquer importante papel.

Foi com essa ideia - criar novos espaços de expressão para os africanos que não estejam apenas associados à cor da pele - que nasceu a Associação Griot (nome dado aos primeiros contadores de histórias em África, aos que perpetuam a tradição oral).

Os actores Daniel Martinho, Ângelo Torres, Miguel Sermão são o núcleo fundador. Outros juntaram-se a eles. Hoje são 80 associados - actores, bailarinos, escritores, fotógrafos, artistas plásticos, encenadores. Organizam workshops, formações, criam espectáculos.

Têm a sede nos Penicheiros, Barreiro, e querem chegar às grandes salas, dar ao teatro "a amplitude da mestiçagem que já habita Portugal - e especialmente Lisboa", diz o actor Daniel Martinho.

Existem não para reclamar um teatro só para negros, mas para mostrar o seu trabalho, como numa montra, na esperança de que novas portas se abram e mais actores negros subam aos palcos, num espaço que também consideram seu - Portugal. O que interessa é como se faz a entrega à personagem. Quando há magia, a criação é quase transfiguração e a cor da pele deixa de existir para revelar o que está dentro dela.

Poucas companhias têm actores negros nos elencos fixos ou frequentes. São exemplos Rogério Boane, de Moçambique, na Companhia de Teatro de Braga, Miguel Sermão na Comuna em Lisboa (também entrou no filme "O Barão" de Edgar Pêra), Alberto Magassela, de Moçambique, no Teatro Nacional de São João no Porto (que entra em Alma de Gil Vicente).

Pelos palcos do Teatro dos Aloés ou do Teatro Meridional, em Lisboa, passam muitos actores negros, em parte pelos temas das peças que levam à cena. Os festivais, alguns ligados aos países lusófonos, são lugar privilegiado de divulgação e conhecimento de actores africanos.

Baralhar códigos

Lisboa é tão africana, parece dizer Rogério de Carvalho, que essa presença se torna - ou deveria tornar-se - natural. Em cada esquina há vestígios de uma passagem tão antiga quanto a escravatura, sinais de Lisboa ter sido, em tempos, a capital europeia mais influenciada por África, como diria o escritor Jean-Yves Loude, autor do livro Lisboa na cidade negra (Dom Quixote, 2005).

"Tendemos a ficar todos mulatos" com a presença africana em Portugal, concorda Natália Luiza, encenadora e co-directora artística, com Miguel Seabra, do Teatro Meridional. "Não podemos fugir a uma realidade social." Em 2004, encenou Geração W, do angolano José Eduardo Agualusa e, em palco, escolheu diluir a importância da raça, ao juntar duas famílias - os Anjos e os Paixão - em que, numa, os pais eram negros e os filhos brancos, e na outra o inverso. Baralhou os dados, deixou a raça de fora para que não distrair os espectadores da história.

Mas na realidade, no teatro português, a encenadora não vislumbra qualquer tendência para a inclusão de actores negros em peças brancas. Pelo contrário: "Nunca eu vejo num primeiro olhar, a não ser que haja uma história associada a África, um actor africano ser escolhido em detrimento de outro qualquer. Nunca é uma primeira escolha."

E acrescenta: "Se as pessoas vêem um negro" num papel principal que não encaixa com a história "começam a fazer sub-histórias", a interpretar o que não está lá. Os encenadores evitam fazer isso para que o elemento raça não se sobreponha à narrativa, ou nela interfira. "Preferem eliminar e chamam actores negros para papéis de margem", explica Natália Luiza. E esses clichés erguem-se como um gueto de onde os africanos se querem libertar.

"Colocar um actor negro em palco tem uma determinada leitura" e "muitas vezes, a escolha de actores brancos tem a ver com a imposição da peça", considera Pedro Rodrigues, produtor da Cena Lusófona - Associação Portuguesa para o Intercâmbio Teatral, mesmo se existem encenadores que derrubam fronteiras, como fez Natália Luiza com Geração W, em 2004, ou Mónica Calle em 2011, com A Missão - Recordações de uma revolução de Heiner Müller, em que a actriz e encenadora da Casa Conveniente baralhou os códigos ao assumir ela própria papéis masculinos e de uma negra e ao dar a dois actores negros os papéis de brancos, nesta história passada no tempo da revolução francesa.

Em alternativa, a chave para anular o elemento raça dos palcos pode estar na criação de companhias multiculturais - cujos actores em palco se misturem de tal forma que a cor da pele deixe de ser um código de leitura - ou na entrada do universo de África - através dos autores ou das histórias - nos reportórios dos teatros.

Quando em 1999, o Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris, dedicou a temporada à dramaturgia das townships (bairros negros) da África do Sul, no tempo do apartheid, o director Peter Brook disse numa entrevista ao L'Humanité: "O que nos dão os artistas de África é o pleno investimento do corpo, dos pés à cabeça. No Ocidente, nos anos 60, andámos todos em busca dessa descoberta do corpo, e lá, espontaneamente, o corpo fala."

E é esse corpo - de actores negros - que o encenador que dirigiu o teatro mais de 35 anos, desde 1974, incluiu de forma natural em muitas das suas peças e óperas como a Flauta Mágica, em 2010.

Escreve a revista Africultures que Peter Brook trabalha de forma "a que um actor branco ou amarelo possa fazer o papel de um negro, sem outro significado que o do teatro". "Brook aborda o actor como material humano para amassar qualquer que seja a sua origem."

Natália Luiza também realça "a corporalidade dos actores negros". E diz: "Nós chegamos às coisas muito pela cabeça. Com eles, a relação com a fisicalidade é uma relação mais honesta. Tocam-se mais, o corpo reage a esta plasticidade." E o teatro, conclui, beneficia disso.

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