Malkovich em Lisboa: o elogio a Raúl Ruiz e Manoel de Oliveira

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Malkovich esteve à conversa em Lisboa Miguel Manso

Chega ao telemóvel, muito informal, despindo o casaco como se estivesse numa sala que lhe é familiar. À sua espera estão centenas de pessoas – o bar da Fnac Chiado é pequeno quando o convidado é John Malkovich.

O público está lá para ver o actor que foi o amargurado Mr. Will de Lugares do Coração (Robert Benton,1984); o repórter Al Rockoff de Terra Sangrenta (Roland Joffé, 1984), o sedutor visconde Sébastien de Valmont de Ligações Perigosas (Stephen Frears, 1988), o professor que acredita que Shakespeare nasceu em Espanha de O Convento (Manoel de Oliveira, 1995), e o fragilizado barão de Charlus de O Tempo Reencontrado (Raúl Ruiz, 1999).

Foi precisamente Ruiz que fez o actor norte-americano regressar a Lisboa para trabalhar em As Linhas de Torres, o filme que o realizador chileno deixou por fazer quando morreu, no ano passado, numa altura em que o seu último título, Mistérios de Lisboa, recebia elogios da crítica e do público (o filme está a ser feito pela sua mulher, a cineasta Valeria Sarmiento).

“Raúl era uma pessoa especial”, começou por dizer a Paulo Branco, que moderou nesta segunda-feira a conversa entre o actor e o público, na qualidade de produtor de vários filmes do chileno e de Oliveira, realizador com quem Malkovich gosta de trabalhar. “Era o pensador mais independente que conheci no cinema.”

Ao longo de 40 minutos, Malkovich recordou vários episódios da sua relação com Ruiz, que conheceu na década de 1990 e com quem rodou, para além de O Tempo Reencontrado, As Almas Fortes e Klimt. Falou da sua imensa cultura, da sua “visão singular” e do seu amor pelos actores: “Os actores amavam-no porque ele amava os actores, o que, obviamente, não acontece com muitos realizadores”, disse Malkovich, reconhecendo que filmar com o chileno era sentir de perto o seu olhar atento e inteligente, o seu “bom gosto”. Trabalharam pela primeira vez juntos em O Tempo Reencontrado, a partir de Proust, o que representou um imenso esforço para o actor americano que à data não falava francês. No primeiro dia de rodagens, a uma pergunta de Malkovich sobre uma garrafa de água, feita a custo, Ruiz deu uma resposta de meia hora que envolvia umas árvores que perdiam as flores em Junho… “Nunca deu uma resposta directa a nenhuma pergunta que lhe fiz. Nunca”, disse entre risos.

A proximidade da literatura, o humor e sobretudo a singularidade do olhar é o que aproxima o chileno de Oliveira. Para Malkovich, há algo de “perverso” e “chocante” na forma como o realizador português conta histórias. Para dar um exemplo, descreve ao pormenor uma cena de O Princípio da Incerteza, coreografando com as mãos os movimentos lentos da erva sobre a encosta, como se quisesse que o público recordasse aquele longo plano de Oliveira. “Se eu viver até aos 104 [Manoel de Oliveira fará 104 em Dezembro], não me espantarei se ele ainda estiver a fazer um filme por ano. Há ali qualquer coisa estranha…”

Perdendo alguma da timidez inicial, o actor recordou o dia em que assistiu ao salto atlético de Oliveira para entrar num cemitério na Arrábida aos 87 anos e a forma como ele convenceu uma equipa que fazia segurança no Tejo, num dia de rodagem com ondas grandes, de que o americano era praticamente um nadador olímpico. “É por causa de pessoas como o Manoel e o Raúl que somos capazes de acreditar que a vida é linda.”

Notícia corrigida às 21h35

Por lapso, estava escrito no título "Miguel Oliveira". O correcto é Manoel de Oliveira.


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