O romance que derrotou Per Olov Enquist

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Numa manhã de Fevereiro de 1991, Per Olov Enquist decidiu que não tornaria a beber e que também não tornaria a escrever romances; quebrou a promessa com “A Visita do Médico Real”

“A Visita do Médico Real” foi o livro com que o sueco Per Olov Enquist quebrou uma antiga promessa, fascinado por um episódio histórico que no século XVIII espalhou os ideais iluministas no Norte da Europa. “O modelo escandinavo de Estado social tem aí as suas raízes”, diz ao Ípsilon

Per Olov Enquist parece ter nascido para a fama: na década de 50 era um dos maiores saltadores em altura escandinavos, chegando a ser recordista nacional sueco com a marca de 1,97m; depois de abandonado o desporto, dedicou-se à escrita literária e ao teatro, e também aí se tornou num dos mais importantes, premiados e traduzidos escritores e dramaturgos nórdicos, tendo o seu nome sido referido mais do que uma vez para o prémio Nobel.

Depois de ter passado mais de 20 anos a debater-se com um problema de alcoolismo, numa manhã de Fevereiro de 1991, o escritor sueco Per Olov Enquist (n. 1934) decidiu que não tornaria a beber e que também não tornaria a escrever romances: a partir de então o seu talento seria orientado apenas para a escrita teatral. Em conversa com o Ípsilon, a partir de Estocolmo, onde vive, justificou: "Passei demasiados anos a tentar perceber as razões pelas quais estava dependente do álcool, e acho que nunca as encontrei. Quanto à escrita de romances, não consegui ser tão forte. Fui derrotado." Essa promessa foi oficialmente quebrada - o que lhe trouxe uma espécie de "segunda vida literária" - oito anos depois, com a publicação de um romance histórico, "A Visita do Médico Real". Foi com esta história, uma incursão no século XVIII e nos começos da Revolução Iluminista nos países nórdicos, que o seu nome se tornou internacionalmente conhecido ao ser-lhe atribuído o Independent Fiction Prize, a que se seguiram muitos outros, entre os quais o prémio para o melhor romance estrangeiro publicado em França.

E afinal porque voltou à escrita romanesca? "Eu estava a viver na Dinamarca havia mais de dez anos quando me deparei - porque me interesso muito por História - com o que chamei ‘caso Struensee'. Fiquei chocado por desconhecer esse episódio do Iluminismo, de grande importância e interesse não apenas para a História dos países escandinavos mas para a História europeia, e por ele ser tão pouco conhecido e estudado. E comecei então a ler tudo o que com ele se relacionava, tudo o que então encontrei na biblioteca de Copenhaga, e que foi muita coisa." Mas porquê transformar essa história de amor entre um médico visionário e uma rainha num romance? Poderia ter sido uma peça de teatro, ou o argumento para um filme, insistimos. "O romance é um instrumento fantástico, pode-se dizer o que quisermos e da maneira que quisermos, há espaço, e nós temos o completo controlo de tudo", diz Per Olov Enquist. "Numa peça de teatro temos apenas três horas. Num filme temos sempre muita gente envolvida, e isso não me agrada" (Enquist fora, anos antes, o autor do argumento do filme "Hamsun", de Jan Troell, protagonizado por Max von Sydow).

Uma mensagem para a Europa

"A Visita do Médico Real", recentemente traduzido e publicado em Portugal pelas edições Ahab, ultrapassa as definições habituais para o género "romance histórico", pois é uma mistura entre reportagem e drama, atravessada por ideias filosóficas, uma narrativa soberba do choque entre a razão e o dogma, entre o humanismo e a tentação do poder absoluto. "É um romance baseado em factos históricos, eu não podia ignorar nenhum facto que conhecesse", diz Enquist. "Quando escrevi sobre o amor físico entre Struensee e a rainha, não houve um microfone escondido atrás da cama, mas eu sei o que aconteceu. Eu sabia onde estava a cama, e em que quarto, e conhecia já muito bem as duas personagens. Acho que a minha longa experiência na escrita teatral me ajudou muito quando tive de espiar por dentro a cabeça delas." O autor mostra-se ao longo de todo o romance muito mais interessado no pensamento das várias personagens (que compõem uma galeria de vultos do pensamento, onde não falta Voltaire) do que nas descrições de cariz histórico, quer dos palácios quer do modo de vida da corte. Para nomear o período do "Governo" de Stuensee, Per Olov Enquist criou a expressão "revolução dinamarquesa", o que parece querer levar o leitor a entender esses tempo como precursor dos ideais franceses de liberdade, igualdade e fraternidade. "Aquilo a que chamei ‘revolução dinamarquesa' foi qualquer coisa que eclodiu um pouco cedo no tempo, poderia ter acontecido noutro país, na Suécia ou na Rússia", nota Enquist. "Foi uma importante mensagem para o resto da Europa, e colapsou, mas no fim acabou por sobreviver. Até agora. Os ideais do Iluminismo continuam vivos ainda hoje. O modelo escandinavo de Estado social tem as suas raízes mais finas nesse tempo de Stuensee."

A escrita em "A Visita do Médico Real" é concisa, feita de frases curtas e depuradas. Mas são os diálogos o que mais se aproxima da escrita teatral que tanto parece ter influenciado Enquist. "Não se pode aprender muito com Strindberg, excepto a sua escrita maravilhosa que criou as bases da literatura sueca. Como homem do teatro, ele foi um solitário, e é difícil aprender dele. O Ibsen foi um autor diferente, o seu talento como dramaturgo é tão pedagógico que qualquer um aprende com ele. Eu aprendi. Bem como com todos os autores que li até aos 35 anos de idade."

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