Voltamos aos contos?

Em “O Homem do Turbante Verde”, Mário de Carvalho mostra que precisamos de regressar aos contos, num dos melhores livros de 2011

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Miguel Madeira/Arquivo
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Numa altura de incerteza em que se discute as repercussões de um regresso ao escudo, podemos estar certos que aos contos, pelo menos, vale sempre a pena voltar. O género vem sendo lentamente esquecido, perdido no meio de todos os romances elefantíacos (espartilhados, a maioria, em fórmulas rarefeitas) que ficam bem nas estantes mas que - sejamos sensatos - ninguém tem paciência para ler. Ademais, esta predilecção pelo calhamaço é ainda mais estranha se pensarmos que o limiar de atenção está a diminuir até aos breves minutos, quanto muito, que dura um vídeo do YouTube.

Salvem-se por isso os contos, como notas velhas e empoeiradas resgatadas do fundo de uma gaveta. Estão livres das "gorduras" improdutivas dos romances, e um livro pode conter dezenas de histórias diferentes, o que em tempos de austeridade é uma boa notícia para a poupança das famílias.

Um bom exemplo disso é "O Homem do Turbante Verde e outras histórias", de Mário de Carvalho, que apareceu amiúde no habitual desfile das "listas" de fim de ano, juntamente com o romance "Quando o Diabo Reza". A colheita de 2011 foi excepcional para Mário de Carvalho, autor já de si bem amadurecido por trinta anos de profícua actividade.

Porque deves ler este livro?

Neste livro encontramos uma prosa experiente e seguríssima que nos deslumbra constantemente ("baixou um estralejar grave e foi crepitando sobre as copas das árvores, como sementes num couro de búfalo, e desinquietou-as do pasmo da eternidade"), a que se junta um olhar imaginativo e sagaz sobre situações que vão desde a luta antifascista até à perseguição de um peixe voador pelas ruas de Lisboa.

Os dez contos distribuem-se por quatro partes: na primeira, temos o conto que dá o nome ao livro, sobre a guerra no médio oriente, e "Na terra dos Makalueles", um "capricho tropical" sobre África, com "vénia aos escritores e cineastas que a encantaram". A segunda parte passa-se no tempo da ditadura, em três narrativas preciosas sobre a luta antifascista. De seguida surgem dois contos onde o fantástico impera: "O calecanto" (o tal peixe fugitivo) e "A contaminação", sobre um homem que não consegue sair do Porto mesmo que o tente por todos os meios possíveis. Por último, aparecem três exemplares de uma estranheza kafkiana e opressiva, sobre equívocos ("O chochman"), o desumano ("A longa marcha") e a paranóia conspirativa ("O reduto").

Esta colecção é um óptimo exemplo daquilo que o conto pode oferecer: o ritmo, a concisão, a construção exímia das histórias, entre tantas outras coisas. As editoras têm reservas em publicar livros deste género porque não vendem. Ou não vendem porque as editoras partilham com o público o preconceito em relação ao conto. No entanto, qualquer pessoa que se debruce, ainda que superficialmente, sobre a literatura, percebe a sua importância - o próprio romance teve origem no conto, como um "prolongamento", ou, como defende Jorge Luís Borges (um dos escritores mais importantes de sempre, que, curiosamente, não escreveu um único romance), em obras fundadoras como o D. Quixote, que entende como narrativas "desmontáveis".

De qualquer forma, quer voltemos ou não aos contos, um livro é ainda mais eterno do que esta crise que arrastamos nos calcanhares há demasiado tempo. O IVA nos livros não subiu - é uma boa notícia. Resta-nos apenas descobrir quanto realmente valem.

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