Tesão ou morte

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Zeca, o protagonista de “Pornopopéia”, é o herói que a nossa pátria-língua não tinha. Tão teso quanto a escrita de Reinaldo Moraes. Encontro num fim-de-tarde em São Paulo, com temporal

"Vamo vê aqui mais um tico de Jack, um teco de pó, um tapa na brenfa e um totó no bico da breja. Tico, teco, tapa e totó. Adoro essa língua, última flor do felácio, tão puta e bela, que sonora se desdobra em tanto pau pra quanta obra."

"Pornopopéia"

O pau de Zeca é o último dos duros. Quem diz pau, diz nabo, rola, jeba, bilau, neca, piupiu, pilinha, pirulito, piça, pemba, pinto, pingolim e "o caralhaquatro". Seiscentas e sessenta páginas de sacanagem na versão de bolso como o leitor em língua portuguesa nunca viu, sendo que sacanagem é aquela palavra brasileira para sexo melhor que sexo.

Um Homero, o Zeca. A repórter passou os últimos dias a conviver com os orgãos dele, e a convivência dele com os orgãos alheios, sendo que a "alma, como se sabe, é um organismo arcaico com três órgãos: miolos, estômago e genitália". Então, na iminência de encontrar o autor numa noite de temporal em São Paulo, a repórter sente o peso de tanta, hã, informação.

Por exemplo, o apego de Zeca ao minete vampírico ou à cópula com aquela lula que ainda virá a ser cozinhada é de quem não só traduziu Bukowski como não murcha diante de Phillip Roth; além de Bukowski e Roth, leu Miller, Sade, os Beat, Sá de Miranda, Cesário, Rimbaud; além dos "pornôs de quinta" viu os Bresson e os Godard; e cavalga tudo num português tão teso quanto um aríete da Guerra de Tróia. "Continuei a curtir meu pau sanguinário em contraste com a bundalva a emoldurá-lo", conta Zeca. "E tudo era poesia, tudo sacanagem, tudo alegria."

Sensaborões, fugi enquanto podeis. Título justo, "Pornopopéia". E conhecer alguém que faz justiça a um título destes?

O lugar é uma esplanada, palavra que aliás o vocabulário paulistano (e brasileiro, em geral) não pratica. A esplanada de um "bistrô" nos Jardins, perto da casa do autor. Os Jardins são um bairro chique, lado esquerdo da Avenida Paulista, no sentido Consolação. Condomínios com jardins e grades, passeadores de dálmatas com trela.

Reinaldo Moraes é pontual. Lá está, chope na mão, cabeça grisalha-quase-branca de quem aos 20 anos era uma espécie de Che, barba e cabelo negro, arranca-corações, fácil imaginar os estragos, até hoje. Vai a caminho dos 62.

A repórter senta-se, o autor revela-se um cavalheiro, as nuvens desabam na tela sobre nós. Fica aquele cheiro de cidade tropical com chuva grossa. É a hora do trânsito mais cruel, filas de dezenas de quilómetros nas marginais de São Paulo. Por uma hora estaremos a salvo, e até há chope escuro. Beleza.

Sendo um cavalheiro, o autor saca piropos a Portugal. Vamos de Miguel Esteves Cardoso, para começar. O MEC em Lisboa, em 1992, aqueles tempos áureos em que Portugal achava que não ia desaparecer. Reinaldo andou por lá, esteve no "Independente", conheceu o MEC. "Genial", resume. Alô Praia das Maçãs, câmbio.

E, pelas notas da repórter, assim aquecidos seguimos para "Pornopopéia", acontecimento de 2009 na literatura brasileira (edição este ano na Quetzal). Raras vezes se terá visto no Brasil rendição tão completa das mais empedernidas almas, dentro e fora da literatura. Fácil ter elogios, a questão é sempre vindos de quem. Neste caso, os últimos dos duros celebraram o último dos duros. Zeca era o herói que esta nossa pátria-língua não tinha: pantagruélico, priápico e perdedor.

De onde vinha o autor? Fizera sensação em 1981 com "Tanto Faz", sumo das suas andanças parisienses. Reincidira em 1985 com "Abacaxi", entre Nova Iorque e o Rio de Janeiro. Vinte anos depois cogitara um volume de contos chamado "Umidade", e daí resultou o romance que temos em mãos: "O núcleo duro do ‘Pornopopéia' é um conto que ia integrar o ‘Umidade'", explica Reinaldo.

Esse núcleo duro consiste numa orgia, aquilo a que os brasileiros chamam suruba, e que no livro se transforma em surubrâmane. Os artiguinhos (como diria Vítor Silva Tavares) não são para resumir enredos, mas tentemos situar o leitor.

Sinopse de Zeca

O paulistano Zeca, que vive de "cinesabujice empresarial", tem em mãos um "job": escrever uma ode aos "embutidos de frango da Granja Itaquerambu", para depois a filmar. Claro que quando se senta em frente ao computador tudo o que ele não quer é escrever uma ode aos embutidos de frango, e qual de nós não está com ele, e esta sua máxima intemporal: "Job é foda, cara. Meu reino por um ‘blowjob'."

É que ainda por cima Zeca tem a cabeça cheia das maravilhas da véspera, a tal orgia, suruba, surubrâmane. E assim, em vez da ode aos embutidos, o que vai jorrar dali é o relato dessa véspera, quando Zeca se achou no Ritual Bhagadhagadhoga, frequentado por cultores do divino Zebuh do pau empinado. Isto, na companhia de uma gorda média, uma gorda total, um fuinha magrelas, um colosso gay e sobretudo da menor Sossô - "branquésima, narizinho finlandês da Björk, cabelo preto-graúna, tingido, de corte assimétrico inspirado na teoria do caos, olhos otchichórnios um tanto asiáticos e capitulinos", que não só lera com deleite "A Filosofia na Alcova" como não morreu afogada quando o colosso desaguou todo na boca dela, enquanto Zeca se ocupava da bundalva. "Eu intuía que aquele corpo era o endiabrado continente da essência volátil que vivo procurando às tontas na urbe, na orbe e nos úberes das donzelas, e que, se calhar, consiste no tesão em si mesmo, nada mais."

Louvado seja o caralho, diria Manuel da Silva Ramos, talvez o cidadão português mais contemporâneo de tudo isto.

Gordas, fuinha e colosso ainda hão-de rebolar nas muitas combinações possíveis, com o nosso herói sempre nos limites da heterossexualidade. Pois se há uma palavra mais certa para "Pornopopéia" do que sacanagem será heterosacanagem. É certo que lá para a frente teremos um travesti, Lolla Bertoludzy de sua graça, e é uma das cenas antológicas do livro, mas digamos que Zeca tira o pau da boca e a mão do pau, e isto já é contar mais do que a conta.

Últimos pós do nosso herói, se ainda não vos abriu o apetite: fez a escola de cinema e um filme chamado "Holisticofrenia", frequenta um bar chamado Bitch onde cheira coca a desoras, está casado com uma académica à beira de um ataque de nervos, é pai de um filho chamado Pedrinho mas nunca o levou ao pediatra, gosta de chupar dedos dos pés com sujeirinhas, cita Nelson Rodrigues como um mestre ("Perdoa-me por me traíres"), venera as crónicas de Rubem Braga e faz lembrar António Lobo Antunes quando recorda o pai a ir para a cama, ao serão: "Às vezes se lembrava de dizer boa noite à velha, em geral quando já estava no segundo lance da escada e, portanto, de cabeça e tronco não mais visíveis. Eram suas pernas que davam boa-noite."

De resto, Zeca sabe que "amigo é sempre uma pessoa vestida", "puteiro é palácio" e como último desejo queria uma puta da Augusta, aquela rua que muda de mundo quando cruza a Paulista.

Ainda há um crime, e uma segunda parte, com o nosso Homero jogado para fora da sua Ítaca. Haverá então momentos em que tudo aquilo parece desnecessário, porque Zeca já estaria no Olimpo só com a parte urbana do livro. Mas logo tiramos o chapéu ao autor pelos tomates de se ir meter no que não domina, reinos naturebas, no litoral paulista. É aí, aliás, que se trava a cópula da lula, em homenagem explícita ao fígado cru do "Complexo de Portnoy", de Phillip Roth.

E Zeca envia tudo o que escreveu, com as seguintes instruções de revisão: "Evite lirismos lambisgoias, insights psicossociológicos modorrentos e, sobretudo, morais-da-história digestivas ao gosto do distinto público de classe média de shopping." Envia a quem? Zeca não diz, mas diz que é o tradutor de "Mulheres" do Bukowski, e esse tradutor chama-se Reinaldo Moraes. Em suma, a personagem entrega-se ao autor.

Regresso à esplanada

Mais um chope. Reinaldo ia explicar que tudo começou, então, em 2004, naquela orgia surubrâmane, que ia ser um conto para o livro "Umidade". "Aí, o Luiz Schwarcz [então já editor da Companhia das Letras], que editara o meu primeiro livro como funcionário da Brasiliense, disse: "Esse conto não está bom, não começa nem acaba. Fiquei meio puto, porque tudo o que você escreve é intocável, mas na verdade o conto não vinha de lugar nenhum e não ia para lugar nenhum."

E tinham passado 19 anos desde o último livro de Reinaldo Moraes. "Minha vida estava uma bagunça, sem pintar trabalho, fazendo só pequenas traduções. Aí no final de 2004 o Mário Prata me chamou para escrever uma novela da Globo. Eu já tinha escrito duas novelas, uma sitcom, todo o tipo de merdas. Isso dá uma mão para arquitectar tramas, lidar com um universo de muitas personagens, um arco de tempo grande. Em ‘Pornopopéia' muita coisa acontece em muito pouco tempo. Ou você dilata na vertical ou na horizontal."

Reinaldo aceitou escrever a novela. "Eu trabalhava duas horas por dia e havia muitos dias sem trabalho, recebendo 15 mil reais por mês." Seis mil euros. "Estava numa fase me separando de tudo, quase de mim. Comecei andando na rua: ‘Quero escrever um livro que não tenha super-ego nenhum. Um cara que seja o contrário de mim, que fui coroinha [menino de coro], que batia uma punheta e rezava 100 avés-marias. Quando li o ‘Crime e Castigo', eu disse: ‘Puta que pariu, sou esse cara, fritando nessa culpa.' Então, queria escrever uma coisa amoral, sem culpa. E, simplesmente andando na rua, tive uma epifania: o cara da surubrâmane é esse sem super-ego! Um novo Macunaíma [protagonista do romance de Mário de Andrade], a personagem sem carácter. Aí comecei a trabalhar para trás e para a frente, quem é ele, onde ele trabalha..." Dilatando, nas horas livres da novela. A novela acabou e o romance continuava.

"A grana que ganhei da Globo deu para segurar até final de 2006, sempre escrevendo, sem parar. Tinha um escritório, me trancava lá sozinho, todo o dia, fim-de-semana, férias. Saía com a família, voltava bêbado, escrevia. Não conseguia desgrudar do computador. Enquanto as ideias vinham não queria perder nada. Escrevi meio possesso, numa catalização de estar envelhecendo, meio fora dos meus meios, ninguém me chamando para fazer roteiro. Acordava 5h30, e às 6h estava escrevendo. Sumia de casa. Escrevia e jogava fora. No fim do dia jogo fora. Três meses depois jogo fora. Faço uma coisa assim de ir para trás e para a frente. O que você mais quer é que não transpareça uma trama. Fica disfarçando que tem uma trama. Porque não é possível você ler o livro para saber quem matou."

A segunda parte deve um pouco ao Eça de "A Cidade e as Serras", diz Reinaldo. "Não conseguia acabar, e aí comecei a pensar no Eça. O cara vai para a serra, vai mudar de lugar mas não vai mudar. Vai ser o mesmo filho da puta não iluminado na estrada para Damasco. Não sabe o que fazer com a saúde."

Mais que alterego, antípoda do autor: "Um cara sem culpa." Mas fazendo a catarse do autor: "Usei esse livro para dar baixa de uma vida meio parecida com a dele, um certo donjuanismo boémio, sempre atrás de rabo-de-saia, de cocaína. Embora se passe em 2006, aquilo passa-se de 1985 a 1995. São as coisas que vivi nesse período. O [bar] Bitch era o Witch, em Pinheiros [bairro burguês de São Paulo], e era assim, com a Gaúcha e a Melina [barwomen de ‘Pornopopéia']. Era um lugar onde você chegava às 4h da manhã e rolava de tudo. Não são os factos [tal como contados no livro], mas é o ambiente. Uma coisa que decidi fazer foi uma galeria de todos os traficantes que conheci. Aí fui jogando fora e fiquei só com um."

O Miro, que vai à porta de Zeca vender-lhe coca.

"O pó foi muito forte [nesses anos 80-90] e eu caí de boca. Tinha os bares e as pessoas, era uma espécie de praia paulista. A praia da cocaína. Ao mesmo tempo, eu não queria fazer um livro sobre pó. O Zeca é um cara desistindo do mundo administrado, da família, dos valores , cagando para isso tudo, para esse mundo das instituições que está totalmente roído. Uma anarquia sem utopia. Não há utopia."

Mas há heróis. "Sempre tive admiração pelo boémio que troca o dia pela noite, que também tem um lado cultural, escritor, jornalista, cineasta, mistura de ‘bon vivant' com libertino, boémio mais puxado para o deboche."

Sem resvalar para homens, porque não faz o género de Reinaldo, aquele papo de que somos todos bissexuais. "O Caetano foi convidado para um convénio de lacanianos, ouvindo o papa dos lacanianos dizer que não tem género, que libido corre solta. E no fim disse: ‘Tem viado, sim. Tem sapatão, sim.'" Zeca também acha.

De resto, libido solta, e soltando a língua, o que nos romances em língua portuguesa não tem assim tantos precedentes de peso. "De Lobo Antunes a Chico Buarque, de Eça de Queirós a Machado de Assis, fecha-se a porta na hora de trepar." E este autor quer "transformar o acto em material passível de ser tratado".

Ilíada no México

Em 2007 Reinaldo foi um dos escolhidos para o projecto "Amores Expressos", que enviou autores para várias cidades do mundo, de onde deveriam voltar com uma história de amor. Calhou-lhe a Cidade do México, isto numa altura em que "Pornopopéia" estava na sua fase final. "Passei todo o tempo lá revendo o livro, no bairro de Polanco, entre ricos, com Ferraris e Armanis."

Aconteceu que um dia, noutro bairro da Cidade do México, a Condesa, entrou na bela livraria do Fundo Económico e comprou a "Ilíada", enquanto esperava um amigo. Outra epifania. "Isso é a suruba, bicho! Um monte de caras enfiando coisa um no outro, corpos se interpenetrando, cenas de extremo dinamismo cinematográfico, enfia lança, sai pela boca. Essa extrema corporalidade é o canône dos canônes e é uma suruba. Aí peguei na suruba e reescrevi inteira, recuperando coisas da ‘Ilíada'. A surubrâmane é a minha Ilíada paulistana, enfia aqui, tira ali, e está tímida, comparada com a ‘Ilíada'."

Então no inventário das referências temos Homero ao lado de Bukowski. "Ele é muito mal visto aqui no Brasil, como sub-literatura. Mas se você ler o ‘Mulheres', é genial. E tem essas trepadas... É um cara que soltou a minha língua. Como é que é o cu, a buceta, como é que cheira, se tem violência no meio e no dia seguinte como é que é."

Enquanto que "no Proust o Swann está louco para comer a Odete e só vai conseguir quando estiver instaurado um clima romântico". Mas os franceses têm outros exemplos, a começar pelo Marquês. "Li o Sade com 16 anos para bater punhetas, numa edição portuguesa que um amigo trouxe. É o império da analidade, que é a coisa mais reprimida no Ocidente. Eu me acabava de tanto me masturbar. Escapei de morrer."

Depois, Henry Miller foi "do caralho, o ‘Trópico de Câncer'". Mas Jack Kerouac, Reinaldo leu-o já depois de escrever "Tanto Faz", o livro de estreia. Quanto a poesia, cita "o grande poeta barroco, Gregório de Matos, o ‘Boca do Inferno'". Mas em "Pornopopéia" fez questão de "enxugar a prosa de qualquer lirismo", diz. "Não vá confundir, aquilo é putaria." Nem por isso deixa de ser esplêndida escrita.

E que é feito do livro do México? "Comecei a escrevê-lo, mas depois decidi escrever outro, que vai para a infância em São Paulo. Foi uma cagada que fiz, parar o livro do México." Quando tinha já umas 500 páginas. Está há um ano e meio com o outro, que se chama "A Travessia do Suez" e anda pelas 450 páginas. "Descobri que formam uma trilogia: ‘Pornopopéia' é a Ópera do Malandro. O que estou fazendo agora é a Ópera da Divindade e o outro será a Ópera do Homem Comum."

Tudo calhamaços. Aliás, quando entregou "Pornopopéia" à editora, eram 1000 páginas. "Fiquei um ano e meio trabalhando com Isa Pessoa, da Objetiva." O livro saiu em Julho e o autor mexeu nele até Março.

Há uma passagem em que Zeca menciona "aquela língua esquisita que eles falam lá no condado portucalense", mas malgrado a quantidade de fiadaputa, babacas, escrotos, putideias, pleibas, minas, rolês, mermãos, siriricas ou saideiras, a edição portuguesa mantém tudo isso. Não subestimemos a capacidade dos leitores. A nós, última flor do felácio.

Antes de partir a repórter só se esqueceu de perguntar isto: no meio de tanto calão, Zeca não tem mesmo uma palavra para minete? Quem diz Zeca, diz o Brasil.

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