O deus das pequenas canções

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“Wolfroy Goes to Town” é o seu melhor álbum em muitos anos

Will Oldham/Bonnie “Prince” Billy andou desaparecido - não dos palcos portugueses, mas dos discos relevantes. “Wolfroy Goes to Town” corrige o desvio e mostra-o, segunda-feira, no palco do Teatro Maria Matos, em Lisboa

Às vezes, custa a perceber o porquê de tanto egocentrismo. Esta coisa de ter passado pela cabeça de Will Oldham que ter amigos era coisa para lhe fazer bem, razão para sair de um covil obscuro que teria provavelmente motivado o título de "I See a Darkness", que o piscar de olhos estremunhado ao contactar com o mundo deixara de ser potenciador de pânico e sim razão de curiosidade, foi uma ideia estranha, provavelmente resultante de alguma terapia que meteu as mãos onde não devia. O aparente fim da misantropia teve um custo. O assomo de felicidade - talvez seja exagerado, chamemos-lhe antes bem-estar - pareceu enfiar uma seringa na alma de Oldham e extrair-lhe a pertinência artística. Essa paz, enfim, parecia tê-lo vulgarizado. E isso, repetimos, é demonstração abusiva de egocentrismo, de alguém que prefere estar bem na vida a estar bem na obra. Não se percebe.

Em conversa telefónica, Oldham continua a contrariar tudo o que era até há alguns anos verdades que se espalhavam em tom de ameaça. Entrevistá-lo seria, jurava-se, equivalente a uma sessão de tortura mútua. Oldham não gostava de justificar-se e não fazia por escondê-lo. Agora não se importa de repetir quando a ligação telefónica lhe perde a voz nos fios de cobre por duas vezes e permite-se inclusivamente soltar uma ou outra gargalhada. Este já não é um homem a chibatar-se em cada verso. "Talvez tenha sentido que tenho sido muito privilegiado por poder continuar a fazer música com pessoas de que gosto e respeito, e por ter descoberto um público ao qual estou agradecido", justifica-se. "Sempre que possível, sinto que preciso de incorporar na música alegria e valorização, na esperança de que os outros percebam que tenho consciência desta magnífica posição na Terra que me foi dada a ocupar". Possivelmente imaginando a estupefacção em quem o ouve, apressa-se a acrescentar que "ao mesmo tempo, isso não afasta completamente todo o medo, toda a paranóia, raiva, indignação e todo o ciúme". Respiramos de alívio. Até porque é isso que "Wolfroy Goes to Town", o seu melhor álbum em muitos anos, parece-nos dizer-nos a cada segundo.

Não deixa, assim, de ser irónico que a vida de Will Oldham exerça uma pressão tão grande sobre a persona de Bonnie "Prince" Billy. A decisão que funcionara como uma medida higiénica para permitir a Oldham deitar a cabeça sobre a almofada sem achar que estava a usar a música como um perigoso confessionário, despindo-o desavergonhadamente perante desconhecidos, transferindo para o seu alter-ego verdades e ficções sem validação autobiográfica, não escapa afinal aos seus humores. "Bonnie ‘Prince' Billy existe para que eu e o público partilhemos o entendimento da identidade do apresentador destas canções", diz-nos. "Como o Will Oldham leva uma vida complicada e isso influi na composição, quando alguém comentava positiva ou negativamente sobre a relação do Will Oldham com esta música nem sempre fazia sentido para mim, porque não se aplicava a outras coisas que se passavam comigo".

Ainda assim, passados oito anos, há ainda quem, tendo "uma visão extremamente distorcida da realidade, tenha dificuldade em perceber que, na verdade, Bonnie ‘Prince' Billy não tem uma forma humana".

Apertar botões

Mais ou menos sombrio, cada álbum de Oldham Bonnie começa a tomar forma no momento em que, ao olhar para as canções que foi juntando à sua volta, o músico lhes vislumbra repentinamente um parentesco. A partir desse momento, costuma dedicar todo o tempo e a energia dos seis meses seguintes a reforçar essas ligações. Idealmente, confessa, essa lição cumpre-se, em simultâneo, em três níveis distintos: emocional, temático e musical. A nível temático, como sempre acontece, uma das facas que atravessa o presente disco é a relação turbulenta, culpabilizada e inquieta que Oldham mantém com a religião, em larga medida definida por nunca ter tido "o cristianismo enfiado pela goela abaixo". É por isso que consegue servir-se da religião apenas na dose que lhe parece necessária a cada momento. "Nunca senti que ignorasse ou desprezasse o significado do cristianismo, muito embora não me pareça fazer sentido em muitos aspectos. Por outro lado, não me cruzo com muitas coisas na vida que façam sentido, à excepção de algo como um jogo de xadrez".

Música e religião, argumenta, encontram-se unidas pelo facto de serem ambas "coisas complexas, belas, desafiadoras e perigosas", e as duas criações humanas com que o Homem esteve mais próximo de rivalizar com qualquer deus. "Tenho muitos amigos na comunidade artística que são ateus e parece-me desnecessário afastarmo-nos de uma parte tão grande da humanidade".

Mas nem só a esse deus Oldham presta reverência, ele que aprecia quem se faz passar por um ao manipular os sentimentos alheios. O músico diz-se indefectível de cineastas como Douglas Sirk ou Paul Verhoeven, mestres, na sua opinião, na arte de apertar os botões de ressonância emocional do seu público. Oldham diz que também ele nunca perde de vista este objectivo de "tentar accionar um botão emocional ou político na cabeça do ouvinte". Nada de inocências. E quando lhe perguntamos se isso não trai uma abordagem mais intuitiva da música, atira-nos que "quanto mais elaboradas são as visões políticas, emocionais, políticas ou sociais, mais são fiéis ao reflexo da essência de um indivíduo". A razão para esta abordagem é simples. Apesar de um fundo confessional e dolorosamente pessoal disfarçado por um jogo de espelhos, Oldham assume que quer que as suas canções sejam consequentes. A seguir a ouvi-las deveríamos fazer alguma coisa. Nem que seja, como lhe aconteceu, identificar em Amália Rodrigues o elo perdido entre a egípcia Oum Kalthoum e a tradição folk norte-americana.

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