Há duas Ribeiras Negras, a "pura" e a pública

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Eva Carasol

A poucas semanas de celebrar o seu 90.º aniversário (no próximo dia 23 de Outubro), o pintor Júlio Resende recebeu como "prenda" uma das raras exposições públicas de Ribeira Negra, a sua obra mais conhecida e a que mais o associa ao seu Porto natal, de que é já uma espécie de ex-libris, como o Aniki-Bobó de Manoel de Oliveira, a poesia de Eugénio de Andrade ou o Porto Sentido de Carlos Tê/Rui Veloso.

A extensa tela de 40 metros de comprimento está actualmente em exibição na XIV Bienal de Arte de Vila Nova de Cerveira (até 29 de Setembro), que a fez sair da obscuridade dos armazéns da Câmara do Porto, a quem o pintor a ofereceu depois de a ter criado em 1984.

Para o público interessado pela arte, esta exposição-homenagem oferece uma rara oportunidade de ver que há duas Ribeiras Negras, e de confrontar o original com o painel a que ele deu origem e que foi instalado, em 1987, na Ribeira portuense, junto ao Douro.

As diferenças entre as duas obras, explica Júlio Resende, decorrem, em primeiro lugar, das contingências da passagem de um trabalho inicial de pintura feito num puro "gesto de liberdade" para o grés do painel à saída do túnel da Ribeira.

A diferença mais notória está na alteração do preto e branco original para as cores do azulejo. "O grés tem um revestimento prévio, e aí, queiramos ou não, já há uma cor". Por outro lado, acrescenta o pintor, como o grés é sujeito a alta cozedura, "a gama de cores fica muito reduzida". Isso explica os tons escuros preto, azul e algum vermelho-fogo ou castanho para além de que "a própria estrutura do painel pedia uma contenção de cores".

A Ribeira Negra foi pintada em 1984, em escassos 15 dias, em resposta a um desafi o que o maestro Álvaro Salazar fez a Júlio Resende de criar uma obra para dialogar com a música num festival que aquele estava a preparar para o Porto. O pintor disse que sim. Quando chegou a hora de avançar para o projecto, fê-lo "de um só fôlego", numa sala de aulas da Cooperativa Árvore-Ensino. "Foi um trabalho descomprometido, sem qualquer estudo prévio. Fi-lo como se fosse a explanação de um impulso: eu pintava uma tela, atirava-a para o chão e passava à seguinte, sem poder voltar atrás", recorda Resende.

A obra foi exposta primeiramente nas próprias salas da Árvore e depois no Mercado Ferreira Borges.

E alguém lançou a ideia de a transformar num painel de azulejo, o que veio a acontecer. Para concretizar o projecto, Resende teve de realizar um demorado trabalho preparatório que está documentado em alguns estudos também patentes em Cerveira.

"O painel não é a preto e branco, mas as cores não traem a ideia do preto e branco original", diz Resende, reivindicando o registo expressionista para ambas as versões. As linhas mais duras mais expressionistas, dir-se-ia, principalmente nas mulheres e nas formas que fazem a marca do original, são como que atenuadas pela geo metria no painel. "Aqui há círculos e rectângulos, o que não acontece no original", explica o pintor, lembrando também o esforço físico exigido para a gravação das figuras, a pulso (o seu pulso), sobre o grés. Além disso, foi também preciso ter em conta a função e o lugar onde o painel ia ser instalado para ser visto da rua, numa passagem rápida e fugaz, e "aquilo que fica na memória é o que tem mais a ver com a geometria e com as grandes formas", nota Resende.

No final, de que versão é que o autor gosta mais? "Gosto mais do original, porque é mais puro", responde.

Contornar o bilhete-postal

A Ribeira Negra (ou "branca"?) é um "painel resendeano com as suas manchas de fuligem dispersa e de barrela acabada de realizar", escreveu Mário Cláudio em A Cidade no Bolso (ed. Campo das Letras). Trata-se de "uma obra de síntese", tanto para a carreira do pintor como para o imaginário da cidade.

Numa visita guiada (para o PÚBLICO) à obra original em Cerveira, o escritor começa por ressaltar a importância do preto e branco. "Mas o que acho mais espantoso neste painel é que Júlio Resende virou ostensivamente as costas ao óbvio: o casario e a paisagem urbana". Em vez disso, são as mulheres da Ribeira, juntamente com os rapazes e os cães, que pontuam toda a narrativa. "Há uma concentração do humano, naquilo que é a antroposfera portuense, predominantemente feminina e infantil, e também uma grande atenção a actividades que tendem a desaparecer, como a venda ambulante, as mulheres a lavar no rio e o toque de ruralidade que o Porto então tinha".

Mário Cláudio vê essas mulheres como "figuras truculentas, bárbaras, mas de uma barbárie mais nórdica do que mediterrânica apesar de ver a Ribeira como um lugar mais aparentado ao mundo mediterrânico, de Nápoles, por exemplo, do que normalmente se pensa.

Júlio Resende conhece a Ribeira desde criança. "Lembro-me dessas mulheres, que são como grandes esculturas algumas metiam medo aos meninos. Mas aquilo era uma encenação, porque, na realidade, eram pessoas com uma grande alma, generosas".

Depois, há as crianças e os animais, que Resende encena quase indiferenciadamente.

É curioso notar que, no mural da Ribeira, os dois rapazes sentados sobre o muro substituem os dois cães a brincar no mesmo cenário na obra original. "Aquilo era um mundo que convivia de tal modo que algumas coisas se confundiam", justifica o pintor.

"Os cães são também uma presença forte na Ribeira Negra. Eu, que gosto muito de cães, gostava que eles identificassem o Porto como os gatos identificam Veneza", diz Mário Cláudio, que realça também a ausência-presença do rio, que apenas se entrevê, por exemplo, nos quadros dos rapazes a mergulhar.

Resende diz também ter querido "aniquilar" essa terceira dimensão: "a proximidade do rio, que não se vê mas que eu espero que se sinta".

Sente-se.

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