Um habitar do poeta

James Franco é extraordinário como Allen Ginsberg, numa criação que, mais do que uma recriação, é um verdadeiro habitar do poeta

"Vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura" é uma das mais lendárias frases de abertura da poesia contemporânea. Pertence a "Uivo", de Allen Ginsberg, texto emblemático da geração dos poetas Beat que entronizou Jack Kerouac, escrito em 1955 e levado a julgamento em 1957 pelo promotor público de São Francisco por obscenidade. No papel, é esse julgamento que a estreia na ficção dos documentaristas Rob Epstein e Jeffrey Friedman (“O Cinema no Armário”) encena - e o modo como ele veio levantar questões essenciais para a arte e a sociedade americanas nessa década de prosperidade dos anos 1950 em que “they never had it so good”.

?as esta primeira experiência da dupla fora do documentário puro e duro usa também o poema de Ginsberg como ponto de partida para um híbrido formal que “fragmenta” o filme em múltiplos níveis trabalhados com técnicas e formas. A estética do documentário está presente numa falsa entrevista de época de Allen Ginsberg, rodada num sumptuoso Technicolor, nos falsos “home movies” a 16mm que servem de “flashbacks” do passado do poeta, e no processo de criação e primeira leitura pública de “Uivo” a preto e branco contrastado. James Franco é, nunca é demais dizê-lo, extraordinário como Ginsberg, numa criação que, mais do que uma recriação, é um verdadeiro habitar do poeta, visível sobretudo no transe quase místico das sequências de leitura pública de “Uivo”. A reconstituição do julgamento, repleta de actores de peso (Bob Balaban como o juíz, David Strathairn e Jon Hamm como os advogados, Jeff Daniels e Treat Williams como testemunhas), surge como um clássico filme de tribunal com as cores dos melodramas dos anos 1950.

E se “Uivo” fosse só isto já estávamos muito bem - o problema é que não é, porque a tudo isto Epstein e Friedman somam uma ilustração do poema em animação concebida pelo grafista Eric Drooker, que não é apenas o menos interessante do filme como desequilibra profundamente o conjunto. As imagens de Drooker, sinceras mas demasiado literais, vêm impor à expressividade da poesia uma visão que as diminui significativamente. A animação é falhada, mas isso não torna forçosamente o filme falhado - é precisamente no modo formalmente arriscado mas nunca redutor nem autista que “Uivo” se ganha, porque este é um filme que usa as suas experiências para melhor atingir a essência do seu tema e que o faz sem nunca tomar o público por parvo. Parecendo que não, isso é muito importante.

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