Assembleia de mulheres

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Para as actrizes da encenação de 1986, no Teatro da Graça, e para as que ontem estrearam no D. Maria II, “As Lágrimas amargas de Petra von Kant”, de Fassbinder, é a mais complexa definição do que é ser-se mulher

"O amor é o melhor, o mais insidioso e efectivo instrumento de repressão social", disse Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão (1945-1981) que através dos filmes, e dos seus textos, ajudou a dissecar o que de mais profundo existia na Alemanha do pós-guerra. "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", peça que se tornou filme mítico em 1972 - estreou em Portugal apenas em 1981 -, é a materialização dessa frase num apartamento de uma estilista que representa o poder alemão a perder território face à ocupação por novos valores, princípios e regras. Mas este amor, lésbico, é também a face mais podre de uma Alemanha à procura de si onde a artificialidade dos gestos contrasta com a explosão dos argumentos. A violência do que é dito parece não caber nos espartilhos onde ainda vivem Petra, a estilista, Karin, a amante, Marlene, a secretária, Sidónia, a amiga, Gabriela, a filha, e Valéria, a mãe. A elegância plástica dos corpos não corresponde à sujidade das palavras e, numa espiral alucinada, o que vemos é a eterna ronda da vida. Petra (Custódia Gallego) deseja Karin (Inês Castel-Branco), a aspirante a modelo, ao mesmo tempo que massacra Marlene (Diana Costa e Silva), a secretária - jogo de sedução masoquista que não deixa claro quem magoa quem.

À volta de Petra gravitam Valéria (Isabel Ruth), a mãe, Gabriela (Cláudia Carvalho), a filha, que quer perceber porque não consegue ter o amor da mãe, e Sidónia (Paula Mora), a amiga, mulher acomodada. São mulheres que, num claustrofóbico apartamento, pagam com a sua vida o preço alto da dependência emocional e económica.

Quando a peça estreou em Portugal, em 1986, pelo Grupo de Teatro Hoje, juntou um elenco que se tornaria mítico. Lia Gama era Petra, Sara Lima foi Karin, Isabel de Castro, Valéria, Fernanda Alves, Sidónia, Elisa Lisboa, Marlene, e Maria José Paschoal, Gabriela. Encenada por Carlos Fernando, recebeu elogios rasgados da crítica pelo modo como construía uma ambiência melodramática do cinema dos anos 50 que exacerbava as paixões.

O elenco sobrevivente de 1986 juntou-se, a convite do Ípsilon, às actrizes que desde ontem estão no D. Maria II para darem corpo à leitura que António Ferreira, na sua estreia na encenação, apresenta até 6 de Novembro. Resumo possível de uma conversa sem pudores a propósito do teatro como artifício para pensar a vida.

Que mulheres são estas?

Custódia Gallego (CG): São mulheres nas quais as emoções se cruzam com os conflitos, o exercício do poder e a vontade de humilhar os outros.

Lia Gama (LG): O Fassbinder fazia a autópsia da Alemanha através do poder no feminino. A Petra fala do milagre alemão do pós-guerra e [há nela] o lado do poder económico da pata da águia imperial. [Ele falava de] um poder que pode minar qualquer um e não é só o económico. Mas falava sempre sobre as relações de poder onde até o amor era um jogo.

Paula Mora (PM): É como fossem uma gradação do feminino e do [lugar do] poder nessa relação.

Se Petra for a consolidação desse poder, que mulher é Marlene, a secretária?

LG: É a dominada.

Elisa Lisboa (EL): Não. É ela quem está a dominar.

CG: O prazer de ser dominada também é poder. "Ela não merece melhor" é o que Petra responde à filha quando esta lhe pergunta porque a trata tão mal. É feliz assim. É a relação dominado-dominador que é prazeirosa: és capacho quando és obrigado a ser assim, quando não tens gozo.

CG: Petra já não tem um domínio sobre ela.

E a relação de Petra com a mãe, é também uma relação de poder?

CG: Valéria sempre dependeu financeiramente da filha. Mas a Petra teve tão pouca atenção da mãe como a Gabriela tem da Petra. Têm necessidade e dependência de um amor que nunca tiveram. Parecem estar sempre a pedir aquilo que não vão ter.

Isabel Ruth (IR): É uma história de mulheres mal-amadas.

CG: Eu acho que a Sidónia é muito bem amada. Ela aceita...

PM: A Sidónia é filha de uma educação da qual Petra se conseguiu libertar. Ela vem de uma classe social alta onde a aparência tem que ser mantida. Há um certo conservadorismo, uma relação entre filhos e pais... Nunca recebeu esse amor e tem com o marido uma relação que, se socialmente correcta, é tudo o que a Petra diz sobre o nojo que começou a sentir [sobre o seu marido e a fez separar-se]. Quando Sidónia diz "coitada de ti o que sofreste", fala de si própria.

Projectar-se-á na Petra?

PM: Há uma altura em que Sidónia diz que todas temos as nossas manhas. Através do sexo e da sedução conseguimos o que queremos. No final, quando percebe que há uma relação entre Petra e Karin, não o suporta. Não porque tenha ciúmes, mas porque o que está a acontecer vai contra as normas. Elas não são burguesinhas, tiveram uma educação espartana. Até podem fazer o que quiserem, desde que escondam. Querer divorciar-se é uma vergonha. Ela podia manter-se casada e ter uma amante, mas escondida. Agora, embebedar-se, toda a sociedade saber que ela está apaixonada por uma mulher e ter deixado o marido...

É esse reconhecimento que tanto escandaliza a mãe de Petra?

IR: É uma mulher artificial que finge que se choca com tudo. Aquilo é escandaloso mas ao mesmo tempo ela se calhar já está a pensa noutra viagem.

A filha de Petra percebe melhor a mãe?

Maria José Paschoal (MJP): Ela não fica minimamente escandalizada com o facto de a mãe ter uma relação com uma mulher. Ou então não sabe. A mãe pode ter uma amiga em casa, como já tinha a Marlene.

E Karin, a amante de Petra, quem é?

Inês Castel-Branco (ICB): Não será uma oportunista, mas quer ter um lugar ao sol. Quando vê Petra fará o que for preciso. Se for preciso amá-la, está disponível. A Petra já lhe deu muito e pelo menos [a Karin] dá-lhe esse crédito. A certa altura quer ficar mas já está farta daquela relação.

Mas sente algum tipo de ciúmes em relação a Marlene?

ICB: No fim, é como se dissesse "podes ficar com ela para ti, não quero'". Não há ciúme, mas há uma estranheza. De facto a Marlene faz tudo por Petra e sem razão aparente.

Diana Costa e Silva (DSC): A Marlene não representa tanto perigo para a Karin, como a Karin representa para a Marlene.

ICB: Daí eu achar que Karin é a personagem mais bem resolvida. Segue o seu coração, sem máscaras. O facto de ter tido uma infância pouco colorida faz com que olhe para Petra com um encanto que faz crescer esse amor. A casa, a roupa, falar de cinema e arte, ser culta e elegante. A Karin teve uma infância triste, e de repente tem toda a atenção de uma pessoa que lhe dá tudo o que nunca teve.

Textos como os de Fassbinder, também pelas actrizes que os interpretaram, encaminham a interpretação para um certo sentido.

EL: Não é ao longo dos ensaios, é no inicio. Tem que ser no começo do texto que [as personagens se] têm que encaminhar.

CG: Há textos nos quais as personagens são enriquecidas pelos dados que o texto tem, e aos quais é difícil fugir.

LG: O Carlos Fernando fazia um trabalho exaustivo de dramaturgia que não era de leitura mas de análise. Quando íamos para palco estava tudo já muito consistente. Quando falo dele arrepio-me porque me faz muita falta, era um homem maravilhoso. Dou um exemplo da sua direcção de actores: Petra bebe uma garrafa de gin durante a peça...

CG: Uma de gin, duas de gin, duas de champanhe, conhaque...

LG: Pedi para fazer a experiência de beber realmente. Cortei-me toda quando parti a garrafa. A mais de meio da peça desisti e voltei à agua e ao gelo porque foi mais de meia garrafa. No dia seguinte estava com uma ressaca. Deu para ver a progressão terrível, "overacting". A minha querida Isabel de Castro, que fazia a mãe, sofria comigo, generosíssima como era.

Há uma carga sexual em todas as personagens. Trabalharam-na como?

IR: Na cama. [riso geral]

CG: Tu nem vais à cama.

IR: Vou, mas só para a fazer.

LG: É uma história de desejo profundo da Petra pela Karin, disso não há duvidas.

ICB: E da Marlene por Petra.

IR: É tudo à volta do "Kama Sutra".

EL: Quem leu o "Kama Sutra" que ponha a mão no ar...

CG: Eu já vi as fotografias todas.

LG: Eu tenho duas edições preciosas com iluminuras, lindo, lindo. É pena que só com muito ioga se consiga fazer.

Não querendo interromper esta conversa sobre sexo...

MJP: Foi levantada por si. [risos]

LG: Esta peça não é sobre a homossexualidade. Vi uma encenação em Amesterdão e era um show de sapatonas. A Petra parecia uma pega das janelas da rua vermelha, uma loura platinada horrorosa. A peça não é isso. É sobre o amor, a paixão, a família, o poder, a partilha. É um melodrama. A Petra é uma melodramática.

CG: É uma trágica porque caminha para o limite...

LG: Do melodrama. Ela é uma burguesa. Chora, sobe, desce, é uma dramática, como se fosse um filme dos anos 50. Não são personagens trágicas. São burguesas, filhas do mundo capitalista.

EL: A tragédia está escrita, leva à morte.

CG: Mas isso é visto de fora. É a Lia a falar da Petra.

LG: Não. Estes são dramas da pequena burguesia.

IR: O Fassbinder é que era trágico.

LG: Esse sim. Para mim há dois autores que escreveram papéis femininos extraordinários, o Fassbinder e o Tennessee Williams, e só nisso são comparáveis. São homossexuais sem serem misóginos.

Na vossa encenação, essa dimensão sexual actuava como no público?

EL: Masturbava-se. [risos]

MJP: Eu lembro-me que o público estava muito em cima de nós.

EL: Nunca mais me esqueço de tu [Lia] em cima da cama a querer partir a louça e a não conseguir, cada vez mais furiosa. E o Zé Manel [Gonçalves, cenógrafo] para não estragar a louça, comprou pirex.

LG: Aliás, houve um episódio triste: um dos cacos bateu no tornozelo da Fernanda Alves e cortou-a um bocadinho. Ela ficou ofendida e disse "não se faz, não tens técnica".

EL: E tu disseste-lhe: "olha, bardamerda". E a Fernanda Alves: "nunca ninguém me tinha dito bardamerda".

MJP: E eu ouvia-vos lá dentro aos gritos.

LG: Como se eu tivesse feito de propósito. Foi uma peixeirada. Fiquei anos sem falar com ela. Começámos a falar quando o Carlos morreu e ela veio ter comigo e disse que não fazia sentido, somos tão poucos e qualquer dia morremos.

Ficaram sem falar mesmo fazendo espectáculos juntas?

LG: Sim. Estou farta de fazer trabalhos com colegas como se nada fosse e que depois do trabalho não conheço.

Num elenco de mulheres a ideia de competição é mais forte?

CG: SIM!!! [ri-se e bate com os punhos na mesa]

MJP: A competição tem que ser uns pelos outros e não uns contra os outros.

DCS: Há a competição boa, a que "puxa".

EL: Mas isso não é competição, é contracena. Os termos ingleses e franceses é que estão correctos: "to play" e "jouer". Estamos a jogar.

Se calhar é uma ideia de homem: as mulheres são mais subtis nessa competição.

LG: A competição pode existir fora do palco, mas lá dentro não.

Mesmo que algumas relações de poder de algumas personagens possam ser perversas e queiram suplantar-se há aqui um jogo de dependências, certo?

LG: É o jogo das personagens, não é o jogo das actrizes. Agora toda a gente tem que trabalhar e a competição não pode existir, nem no teatro, nem nas novelas.

MJP: Aí, coitadas de nós.

CG: Era uma dispersão de energia.

Dá-vos muito prazer fazer estas mulheres?

CG: Vou-me tocar! [risos]

LG: Foi uma profunda alegria.

CG: É impossível não ter prazer.

Mas é violento fazer?

LG: Para a Petra era cansativo. Fazíamos um intervalo para podermos respirar.

CG: Eu, se me pusessem intervalo, morria. Eu gosto do cansaço. Ajuda-me.

Por fim, como se pergunta na peça, para vocês é mais chá ou conhaque?

IR: Chá com mulheres, conhaque com homens. Pronto, revelei-me.

LG: Gin tónico, é maravilhoso. A Petra adora. É uma bêbeda.

CG: Menos, muito menos.

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