A lenda do rock português existiu mesmo

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O rock chegou a Portugal através do realizador Leitão de Barros, que organizava umas festas à noite no Jardim da Estrela

Antes do "Chico Fininho", a história do rock português já ia longa. Primeiro no MySpace e depois em secretas edições em vinil, a Groovie Records anda a desenterrar a história ignorada, mas épica, do tempo em que o rock ainda era "pouco edificante"

Quem tem memória visual de Lisboa nos anos de viragem 80-90 só pode lembrar-se dessa figura exótica e camaleónica de Luís Futre (primo do ex-jogador, e também ele vindo do Montijo), que encarnava com exuberância de acessórios e indumentária numa expressão petrificada, o imaginário marginal do rock. Luís Futre nunca tocou numa banda, mas apadrinhou a existência de várias e a sua colecção de discos anda por aí espalhada aos quatro ventos, a divulgar o rock e a inspirar a criação de novas bandas. Aos 44 anos, agora com o cabelo curto, uns óculos de massa e roupa mais discreta, a fazer lembrar os mods dos anos 60, Futre trabalha com Edgar Raposo na Groovie Records - que no mês passado esteve no Atelier Real, em Lisboa, promovendo uma série de encontros e sessões de trabalho com figuras centrais e marginais do rock português desde os anos 50.

Rock português, anos 50. Isso existe? Para a geração do Futre e do Edgar, que cresceu a ouvir dizer que o pai do rock português era o Rui Veloso, parece uma incongruência, mas a história do rock é um conto de fadas ruidoso e a realidade confunde-se com as lendas. A Groovie Records tem vindo a desenterrá-las do esquecimento. Primeiro no MySpace, depois em secretas edições em vinil, a editora anda a revelar o rock que se praticou em Portugal na transição para os anos 60 (Portuguese Nuggets), e também o que era tocado em Angola, Moçambique, África do Sul, Madagáscar (Cazumbi)! Em 2008, quando morreu Joaquim Costa, esse renegado do rock'n'roll, publicaram-lhe o primeiro disco.

Luís Futre conheceu Joaquim Costa (1936-2008) em 1985, na Feira da Ladra. "Estava com uma camisola dos Cramps, um cota veio ter comigo e perguntou: ‘Não me consegues arranjar a compilação ‘Rockabilly Psychosis', que tem o Phantom?' Fiquei fascinado pela pessoa, em virtude de acompanhar o rock'n'roll e a cena underground desde a década de 50." Joaquim Costa contou-lhe a história do rock português, a esquecida, a ignorada e a desconhecida. Ficou a saber que o rock chegou a Portugal através do cinema, e que foi o realizador Leitão de Barros a divulgá-lo, através das noites de Verão que organizava no Jardim da Estrela. Com o dinheiro que ganhou a actuar nessas festas, Joaquim Costa financiou sessões no estúdio da Rádio Graça, fez três acetatos e criou as capas dos discos que haveriam de ficar inéditas até ao ano da sua morte. Futre ficou assim a conhecer aquele que foi um pioneiro da ética de trabalho "do-it-yourself" , que ele mesmo haveria de fomentar em meados dos anos 90 com a editora Beekeeper, quando, associado a Elsa Pires, lançou o álbum "Teenagers from Outerspace".

Edgar Raposo, fundador da Groovie Records, era vizinho de Joaquim Costa. Actualmente trabalha com Pedro Carvalho Costa num documentário sobre ele: "O Joaquim foi um punk na atitude ‘do-it-yourself', na rebeldia, no anti-sistema. Dizia que o rock era para ser cantado em inglês, que cantar rock em português era uma palhaçada. Tinha uma opinião muito própria e um conhecimento muito vasto sobre a história do rock'n'roll."

Daniel Bacelar (n. 1943) gravou o seu primeiro disco aos 17 anos e integrou Os Conchas. O seu percurso é exemplar do contexto sócio-profissional em que surgiram os pioneiros do rock em Portugal: empregado na TAP desde os 22 anos, com possibilidades para viajar, comprar discos e equipamento, o seu primeiro contacto com o rock foi através de uma "pen-pal" (amiga por correspondência para praticar inglês), que lhe enviou, era ele adolescente, duas canções de Ricky Nelson. A estreia de Daniel Bacelar em palco foi "pouco edificante", num programa da RTP ao vivo na Feira das Indústrias, acompanhado de Jorge Machado e o seu Conjunto. Tinham acabado de gravar um disco juntos e acharam que não era preciso ensaiar. "No dia seguinte telefonei para o Sr. Melo Pereira, director do departamento de programas recreativos da RTP, e ele respondeu-me: ‘Pois é Daniel,o Jorge realmente meteu uma aguada desgraçada e todos nós vimos isso, mas quem se lixa é o mexilhão!' Vi imediatamente que seria muito difícil ter uma carreira artística. A aviação deu-me aquilo que muita gente não teve a oportunidade de ter: meter-me no avião e ir ver este ou aquele espectáculo em sítios bem longe, e conhecer gente bem interessante." O rock, para ele, passou a ser uma reunião entre amigos, nos intervalos do trabalho.

Um mundo desconhecido

Em colaboração com a Iplay, a Groovie Records prepara entretanto os discos dos grandes grupos da segunda geração de rock português (Quarteto 1111 e Filarmónica Fraude), assim como uma série de bandas portuenses originalmente editadas pela Rapsódia e a Belter: Jess & James, Tártaros, Espaciais. "Existe mais um punhado de bandas que gostaríamos de ver disponíveis em formato LP, mas as negociações com as editoras responsáveis estão complicadas. Preferem ter o material guardado a apodrecer do que relançá-lo. Por vezes parece que a tal ditadura rígida e inflexível [dos "anos de chumbo" do rock português] permanece, de alguma forma", lamenta Edgar Raposo.

Para João Carlos Calixto, investigador e documentalista musical (colabora com a RTP na série em produção "Estranha Forma de Vida", dedicada à música popular portuguesa desde a década de 30), José Cid é o nome transversal a muitos dos projectos que aconteceram nessa época: "Muitos foram os cantores e grupos que gravitavam na sombra do Quarteto 1111, ensaiando na garagem de Michel Mounier (baterista) e gravando discos produzidos por José Cid e por António Moniz Pereira (guitarrista). Contam-se nomes como Tonicha, José Cheta, Simone de Oliveira, José Jorge Letria e projectos mais experimentais, como Evolução ou Plexus. Em termos de festivais, houve o Festival dos Salesianos, em 1969, que no próprio dia foi impossibilitado de se realizar por carga policial sobre a multidão, e que estava a ser organizado por José Cid; e o Festival de Vilar de Mouros de 1971, em que participaram o Quarteto 1111, os Pop Five Music Incorporated, Chinchilas, Sindicato e Pentágono."

E estudos sobre essa época? "Tudo está por fazer! Está agora a ser elaborada uma tese na Universidade Nova sobre o rock português na década de 70, por Ricardo Andrade, e há textos soltos aqui e ali". Há, por exemplo, "Nova Vaga - O Rock em Portugal - 1955-1974 - História e Catálogo de Edições Nacionais" (Groovie Records, 2008).

Vítor Gomes e "Franjas", convidados para integrarem o ciclo de conversas no Atelier Real são, segundo Edgar Raposo, as primeiras referências no que diz respeito à noção de "undergound" e psicadelismo: "O Franjas teve os Steamers, que foi das poucas - talvez a única - bandas com essa coisa de garage psych, inspirada no rock californiano dos Seeds ou Blues Magoos. Pena só terem gravado um disco. Ainda tivemos os The Jets, um pouco antes, que deram início a esse movimento. A primeira capa de disco com influência psicadélica em Portugal é deles."

A Groovie Records especializou-se na música obscura dos anos 60, reeditando excentricidades de todo o mundo (inlcuindo Ásia e Norte de África) nas áreas do garage rock e do psicadelismo. Dir-se-ia uma editora revivalista, não se desse o caso da música que editam ser praticamente desconhecida: "Essa história da nostalgia é uma desculpa, falta de informação por vezes. Agora anda toda a gente aí nos anos 80, a década em que a música pop e mainstream foi a pior dos últimos 50 anos. Isso sim é um revivalismo, com grandes objectivos económicos por trás".

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