"Esta é a pior tragédia humanitária do mundo"

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Refugiados num campo na Somália Foto: Feisal Omar/Reuters

A maior seca dos últimos 60 anos afecta a Somália, o Quénia, a Etiópia, o Uganda e o Djibuti. "Há décadas que não vimos nada assim", contam os responsáveis das ONG no terreno.

Sainab Yusuf Mohamed partiu com os filhos e calcorreou centenas de quilómetros à procura de ajuda. "Não tínhamos nada para comer". Quando chegou a Bardhere, no Sul da Somália, contou à Reuters que um dos seus filhos não resistiu. "Depois, quando estávamos a enterrar o seu corpo, o meu segundo filho também morreu". Não tinha nada, perdeu tudo à procura de alguma coisa.

Fatuma também deixou a Somália, caminhou um mês com os quatro filhos, de três a dez anos, para tentar chegar a um campo no Quénia. Fez mais de 400 quilómetros e até levou as suas 15 cabras, mas viu-as morrer pelo caminho, uma a uma. "Estava muito calor, havia poucos abrigos", contou a um activista da Save the Children, que depois repetiu a história ao diário britânico Independent. "Deixei o meu marido, não sei se o volto a ver."

Sainab Mohamed e Fatuma arriscaram tudo para chegar a Dadaab, no Norte do Quénia, um campo preparado para receber 90 mil pessoas. Agora é o maior campo de refugiados do mundo, vivem lá 382 mil pessoas e a hemorragia está longe de estancar. Mais de 54 mil atravessaram a fronteira na Somália para procurar ajuda, só em Junho. Por cada dia chegam ao campo de Dadaab pelo menos 1400 pessoas, e outras 1700 pedem ajuda no campo de Dolo Ado, na Etiópia. Mais de metade das crianças que chegam estão subnutridas. Num só campo, escreveu ontem o Independent, estão a morrer 60 bebés por dia.

Dos 7,5 milhões de habitantes da Somália há 2,8 milhões a precisar de ajuda urgente, segundo a ONU. A seca não é uma realidade estranha no Corno de África, mas este ano as chuvas de Abril e Maio chegaram tarde e foram um terço do habitual. É a pior seca das últimas seis décadas: afecta a Somália, Quénia, Etiópia, Uganda e Djibuti, 12 milhões de pessoas segundo as estimativas de organizações humanitárias, mais do que toda a população de Portugal. Os alimentos são poucos e o preço dos que existem disparou. Volta a falar-se de fome, muita fome.

Tragédia inimaginável

"É uma tragédia humanitária de proporções inimagináveis", disse o responsável do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), António Guterres, que na sexta-feira visitou um campo de refugiados somali na Etiópia. "Esta é hoje a pior tragédia humanitária do mundo."

"Há décadas que não vimos nada assim. Funcionários endurecidos por anos de trabalho choram perante o que vêem", afirmou ao Independent Louise Paterson, directora da organização não governamental britânica Merlin na Somália e no Quénia.

Nos campos geridos pela ONU há cada vez mais dificuldades em garantir os apoios mais essenciais, como o acesso à água e a condições sanitárias. "Inúmeras pessoas" nem chegam aos campos porque morrem pelo caminho, segundo o ACNUR, e ao alerta de Guterres juntam-se os de diversas outras organizações humanitárias.

Num comunicado conjunto, o Fundo da Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Programa Alimentar Mundial e a ONG Oxfam apelaram a um maior apoio para colmatar os efeitos da seca "que expõe milhões de homens, mulheres e crianças à devastação da fome e da subnutrição". "Mais de 50 por cento das crianças que chegam aos campos da Etiópia estão num estado crítico de subnutrição e temos cada vez mais informações de crianças que morrem de fome no trajecto", disse a porta-voz do ACNUR, Melissa Fleming. Outras chegam tão fracas que acabam por morrer nas primeiras 24 horas.

Há zonas da Etiópia em que o preço do milho duplicou desde Maio, e na Somália chega a pagar-se mais 240 por cento pelo sorgo vermelho.

No Quénia, muitos pastores percorrem quilómetros para tentar salvar os animais. Um deles contou à BBC que decidiu fugir logo que viu o pasto secar. "Tinha 200 vacas. Levei-as para a Etiópia quando a seca começou. Morreram pelo caminho e voltei sem nenhuma." Segundo estimativas das organizações humanitárias, os pastores já perderam meio milhão de animais na Etiópia desde que o ano começou, isto numa região onde dois terços da população vivem da criação de cabras, ovelhas, vacas ou camelos.

Atravessar a fronteira da Somália para os campos do Quénia ou da Etiópia significa muita vezes mais de um mês a caminhar, ou horas infindáveis em camiões de caixa aberta em que viajam todos os que couberem.

Vinte anos de guerra civil deixaram na Somália tudo menos segurança. Ainda assim, quem não consegue passar a fronteira tenta, pelo menos, chegar à capital, Mogadíscio, para muitos o lugar mais perigoso do mundo mas que, como disse à BBC o responsável pela autarquia, Mohamed Nur, "não é tão má quanto Cabul ou Bagdad".

Na cidade, dividida entre um Governo fragilizado e os rebeldes islamistas, ouvem-se tiros, a "música de Mogadíscio", como lhe chamam os habitantes. Quando o jornalista da estação britânica pergunta se pode percorrer os 100 metros entre o Ministério da Informação e o gabinete do primeiro-ministro, respondem-lhe "não sem um colete à prova de bala e veículo blindado". No entanto, é ali que milhares de pessoas procuram agora comida.

Um fogo lento

Em 2009, os rebeldes do grupo Al Shabbab, milícia islamista com ligações à Al-Qaeda, impuseram um bloqueio às agências humanitárias internacionais, que foram forçadas a abandonar a região. Mas agora, perante o desespero, os rebeldes anunciaram a criação de um comité para coordenar o regresso das ONG "que não tenham uma agenda escondida".

A violência e a crise humanitária na Somália irão deixar mais vítimas, mas nem por isso parecem atrair mais atenção. "São um fogo lento", como escreveu o correspondente da BBC, Peter Greste. "Um cancro que cresceu devagar ao longo de duas décadas num lugar com que o resto do mundo não parece importar-se. Excepto quando os piratas impedem os seus navios de navegar em segurança."

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