Branca de Neve há só uma

Foto

Entrar na Disneylândia como Branca de Neve, sentar-se num escritório só a pensar, passear com um saco cheio de dinheiro - Pilvi Takala quer perceber até onde vão regras não escritas do nosso comportamento colectivo

Só existe uma verdadeira Branca de Neve. É a que assinou contrato com a Disney, que recebe um cheque da Disney e a que está dentro do parque temático da Disneylândia de Paris. Todas as outras, por muito que se esforcem, nunca serão a verdadeira.

Foi isto que Pilvi Takala descobriu à porta da Disneylândia quando, impecavelmente vestida de Branca de Neve - tão impecavelmente que as crianças imediatamente a rodearam pedindo-lhe autógrafos e querendo ser fotografadas ao lado dela - foi informada por um segurança que não poderia entrar porque geraria uma confusão com "a verdadeira", que já lá estava dentro. A ficção tem a sua "realidade", e não quer que outra realidade a ponha em causa.

"Interessam-me os espaços que parecem públicos mas que, na verdade, são privados e onde existe um controlo muito maior em relação ao tipo de comportamento que é aceitável", explica a artista finlandesa (nascida em 1981 em Helsínquia e actualmente a trabalhar na Holanda) ao Ipsílon numa conversa na galeria Kunsthalle Lissabon, em Lisboa, onde inaugurou ontem (até 2 de Julho) a exposição "Flip Side", na qual mostra "Real Snow White" (2009) e "The Messengers" (2008).

"Walt Disney tinha planos para organizar a sociedade perfeita, com uma comunidade verdadeira", conta Pilvi. O projecto nunca chegou a concretizar-se mas os parques temáticos são já uma espécie de mundo de perfeição. "Não só as multidões são controladas, como os próprios elementos visuais: se alguém trabalha na Fantasy Land tem que usar um determinado tipo de roupa e não pode entrar na Discovery Land com essa roupa".

É um mundo de fantasia, mas onde a fantasia tem limites, e onde só as crianças podem andar vestidas de personagens porque se os visitantes adultos o fizerem põem em causa toda a lógica. Uma Branca de Neve que fuja ao controlo provoca medo - medo de que alguma criança a veja a fumar, a beber, a portar-se mal, medo de que algo perverso venha a introduzir-se no mundo dos sonhos (a possibilidade de a personagem se portar mal é invocada pelos seguranças para impedirem a entrada de Pilvi).

Demasiado real?

A Branca de Neve/Pilvi é uma personagem "demasiado-real-para-ser-ficção", resume a artista numa conversa com João Morão e Luís Silva, responsáveis da Kunsthalle.

"Nos meus trabalhos tento fazer uma coisa minimal, não demasiado performativa, como um pequeno erro", explica Pilvi ao Ipsílon. São interrupções numa lógica tácita de comportamento, que deixam os outros confusos, sem saber como reagir.

Em "Bag Lady", outra peça (não faz parte da exposição), a artista passeou-se durante vários dias num centro comercial de Berlim, transportando um saco transparente cheio de dinheiro. "Era uma personagem dupla", ao mesmo tempo potencial vítima e potencial ameaça. Seria perigosa? Poderia ser assaltada? Deveria ser protegida?

Minimal, portanto. Uma acção que não justifica uma resposta drástica, mas que perturba os entendimentos tácitos que temos do que são os comportamentos sociais. Em "The Trainee", torna-se estagiária da empresa Deloitte durante um mês, e nos últimos dias suspende qualquer actividade física, limitando-se a estar sentada na secretária. Quando lhe perguntam alguma coisa, responde que está a pensar - e a situação vai criando um incómodo com o qual os colegas não sabem como lidar.

Recentemente, fez uma experiência diferente: "Players" (2010) é sobre um grupo de jovens europeus (um dos quais irmão dela) que vivem num hotel na Tailândia, ganham a vida a jogar poker e funcionam com regras definidas por eles.

"Geralmente sou eu quem quebra as regras com a minha intervenção. Aqui é diferente. Sentimos que a forma como eles vivem quebra as nossas regras, mas quando procuramos não há nada que possamos dizer que é realmente ilegal ou errado. Ok, ganham dinheiro de forma não produtiva, mas há muitas empresas que funcionam assim."

Será que todos estamos de acordo sobre onde ficam as fronteiras do comportamento aceitável? Quando pôs três actores a telefonar para uma revista cor-de-rosa croata a dar uma notícia positiva mas irrelevante sobre uma celebridade local, Pilvi pensou que a revista não se mostraria interessada. Mas "The Messangers" mostra que as notícias (falsas) sobre a celebridade Vlatka Pokos ter apanhado um telemóvel que alguém deixara cair na rua, ou ter ajudado a empurrar um carro, acabaram por ser publicadas. A ideia de mexerico invertido funcionou.

Porque é que todos seguimos as regras não escritas sem as questionarmos? "É fácil copiar o comportamento dos outros e perceber como nos devemos comportar. Quebrar as regras é que é uma decisão difícil. Se alargarmos um pouco as margens, então alargamos a compreensão do que pode ser possível ou aceitável."

Fica claro que, para a Disney, ser Branca de Neve no lugar da Branca de Neve não é, de todo, aceitável.

Sugerir correcção
Comentar