O homem que trazia em si a sua destruição

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Antes de mais causa impressão a fragilidade de Spector: as mãos que tremem§ a voz entarame-lada, os lábios que quase não se abrem, como se ele estivesse sedado

"The Agony and Ecstasy of Phil Spector" parte de uma longa entrevista com o mítico produtor para criar um retrato aberto. Não nos diz se ele cometeu ou não um crime; mostra-nos que por mais que ele tenha sido o genial criador de um som nunca deixou de ser uma presa do passado. No IndieMusic do IndieLisboa

Quando, a 3 de Fevereiro de 2003, o mundo acordou com a notícia de que uma mulher desconhecida tinha aparecido morta em casa de Phil Spector, não deve ter havido muita gente a presumir inocência alguma. Havia a declaração do seu motorista que afirmava que, após o barulho do disparo, o seu patrão surgira a correr para fora de casa dizendo "Acho que acabei de matar uma pessoa". Mas mais que tudo, havia Spector.

Este homem, que nos anos 1960 teve a maior sucessão de sucessos da pop, há muito que não é apenas um ser humano: é uma mitologia, um conjunto de narrativas apócrifas ou verdadeiras, que em conjunto traçam o retrato de alguém que fez dos seus complexos de inferioridade, da sua raiva contra o mundo, a enzima para criar - mas também para magoar.

Como é que este homem pode ser inocente aos olhos do público? Ele é o homem que escreveu "He hit me and it felt like a kiss" para as Crystals. O homem que fechou Ronnie Spector em casa, com receio das traições (um receio, aliás, fundamentado). O homem cujo primeiro grande êxito pop, "To know him is to miss him", tido como uma balada de amor, roubava o seu título à lápide do pai - que se suicidou quando Phil ainda nem sequer aprendera a ler. (Tudo elementos que o documentário aborda e a que Spector responde.)

A grande vitória de "The Agony and Ecstasy of Phil Spector", de Vikram Jayanti (12, 19h15, S. Jorge 1; 14, 21h30, S. Jorge 3) é a de fazer juz ao seu título, demonstrando que por mais canções extraordinárias que Spector tenha produzido, nunca houve paz na sua vida. E que por mais que ele tenha sido o genial criador de um som que veio a ser imitado no futuro nunca deixou de ser uma presa do passado.

O ódio, não a culpa

"The Agony and Ecstasy of Phil Spector" usa um simples esquema para alcançar o seu fim - um retrato de Spector que deixa todas as interpretações em aberto. O cerne do filme é uma longa entrevista com o produtor datada da altura do primeiro julgamento (que acabou com anulação), que é entrecortada com imagens desse julgamento (vemos peritos a darem o seu parecer sobre algumas provas forenses). Todo o filme é pontuado por canções de Spector, descritas, em rodapé, através de legendas.

Antes de mais causa impressão a fragilidade de Spector: as mãos que tremem, a voz entaramelada, os lábios que quase não se abrem, como se ele estivesse sedado. A perfeição da dentadura, a camisa vermelha garrida, tudo isto choca com a sua nítida decomposição física.
Depois, impressiona como um homem que alcançou tanto pode ter um imagem tão oscilante, já não dizemos de si, mas do seu trabalho: por um lado menoriza todos os outros, de Dylan a Brian Wilson; por outro é o primeiro a admitir que até morrer nunca terá descanso quanto ao real valor do que fez.

A dada altura compara-se a Galileu - isto no mundo comezinho da classe média é já de si um crime, mas percebe-se onde quer chegar: levar a música onde nunca tinha ido, revelar toda a violência que subjaz aos mais belos desejos (como o de amar e ser amado) mesmo que isso nos leve à destruição.

Nesse aspecto, Spector - um homem culto e de verve fácil - tem toda a razão quando afirma que não há volta a dar, uns safam-se sempre, outros serão sempre falhados, serão sempre atacados. Tem a plena consciência que não há enormidade de êxitos que lhe valha: é baixo, feio e o tipo de homem que está mesmo a pedir que se implique com ele. (E admite ter sido alvo dos rufias no liceu.)

Mais contundente - e moralmente repugnante - é uma frase que passa de forma quase subtil: a dada altura Spector diz que os seus colegas de liceu, os mesmos que o gozavam por, ao contrário deles (judeus ricos), ser um miúdo pobre e sem qualidades físicas, acabaram por "ser ninguém". "They are nothing", é a expressão. É aqui que se nota a dimensão da amargura de Spector - já não é amargura, é algo completamente destituído de empatia pelo humano.
O mesmo se pode dizer do seu constante rancor. Quando quer demonstrar como uns se safam e outros não fala de Tony Bennett. Conta que Bennett era um cocainómano do pior, mas que a imprensa, graças ao seu charme, nunca o incomodou com isso. E exemplifica com gente que se tramou. O que parece escapar-lhe é que a vida social é uma espécie de Tetris - e se se tem o comando na mão, pouco importa se se pôs moeda na ranhura: para o resto do mundo trata-se de um jogo e só se ama os vencedores.

Como uma criança, Spector perora por uma justiça que é impossível no mundo dos homens. De novo escapa-lhe o fundamental: a justiça não existe para repor a ordem ideal das coisas; existe para repor uma ordem que conforte o grosso das pessoas.

Das imagens que temos do primeiro julgamento (do segundo, o que o condenou, não surge imagem alguma) é impossível concluir o que quer que seja. Há peritos que dizem ser impossível que ele tivesse feito o disparo, porque os estilhaços teriam de estar por todo o seu corpo; há peritos que asseguram que pelo ângulo do tiro só se pode concluir pela tese de suicídio. E a defesa recupera bastas mensagens da falecida, em que esta aparenta um estado depressivo grave (era dependente de comprimidos, não tinha dinheiro, falava em estar no fundo do poço).

É difícil dizer se há ou não manipulação por parte dos autores do documentário. É certo que comparando as afirmações finais de ambos os advogados, a defesa usa a ciência enquanto a acusação reproduz um daqueles maus diálogos de má série americana ("A falecida tinha um corpo, uma alma", etc).
A moral que se tira de "The Agony and Ecstasy of Phil Spector" é velha, muito velha: não importa o quão alto se sobe se um tipo não gostar de si. Caso contrário, esgota a sua energia em paranóia, manias de perseguição, fetiches doentios, todas as formas de definhamento que nos afastam do mundo. Foi isso que condenou Spector: em vez de aceitar ser diferente, viveu sempre em ódio contra os que não o aceitaram como igual. E na dúvida o que se condena é o ódio. Não a culpa.

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