Zona de contacto

Entremos. Procissão. "As Quatro Voltas" é zona de contacto.

Momento 2, no 2011 português, do percurso de libertação do espectador e de apuramento dos sentidos: depois de "O Tio Boonmee que Recorda as Suas Vidas Anteriores", do tailandês Apichatpong Weerasethakul, "As Quatro Voltas", do italiano Michelangelo Frammartino. Onde somos também cabra ou mineral, onde não há diálogos e onde a figuração humana é empurrada para fora de campo por um cão, Vuk, e pelas suas estratégias terroristas pendulares ao longo da rua de uma aldeia da Calábria. Há neste filme hipóteses para várias vidas de um espectador.

Antes da encenação da Via Sacra em procissão pela rua e que o cão vai sabotar, antes desse extraordinário plano-sequência (onde não há um grama de exibicionismo), morreu um pastor. Depois dele, e depois do cão, nasce uma cabra, e as cabras invadem o ecrã, há uma árvore, que serve o ritual festivo e sacrificial da aldeia, e tudo acaba como carvão, exactamente por onde começara.

Do homem à cabra, desta à árvore e desta ao carvão, como se de estafetas se tratasse, uma vida sucedendo-se à anterior como outra possibilidade, juntando, e são as "quatro voltas" do título, o humano, o animal, o vegetal e o mineral. Parece a fixação artificial de uma narrativa de reencarnação, e é verdade que o realizador se tem referido às tradições animistas da Calábria ou à passagem por ali de Pitágoras, filósofo e matemático grego, autor de teorias sobre a transmigração das almas. Tem-se referido mas tem-se distanciado serena e humildemente - como, aliás, Apichatpong Weerasethakul em relação a reencarnação.

Do que se trata, então? Não da fixação de uma visão do mundo, mas de uma possibilidade de escuta. Até porque num filme sem diálogos ouve-se melhor - sobretudo quando esse filme se quer libertar daquilo que ensurdece e do que já não deixa ver: é a busca de outras vidas para o cinema, e não é por acaso que isso se faz (pensamos também no "Tio Boonmee...") varrendo a hierarquia que coloca o homem no topo da figuração - e é tão aventurosa, incerta a "performance" de uma cabra. (É, para além do mais, a busca de vidas alternativas para o cinema italiano, e calha "As Quatro Voltas" chegar na mesma semana que "A Solidão dos Números Primos": exemplar da "overdose" de redundância destes tempos.)

Não se trata da resposta a um segredo ou explicação de um mistério, mas da experiência do segredo e do mistério - a imagem cinematográfica como zona de contacto. Depois de anos de convívio com os pastores e com as cabras, Frammartino repõe a sua viagem sensorial através do seu filme (o cinema é a sua igreja, disse-nos em entrevista que publicamos neste suplemento). Muito menos documentário de observação, como pode parecer à primeira vista, e mais próximo até de uma recriação de uma experiência, "As Quatro Voltas" é, ele próprio, feito a partir da harmonização de diferentes naturezas, a documental e a ficcional. Como se só o cinema pudesse traduzir o invisível, torná-lo sensorialmente identificável, Frammartino faz-se realizador em comunhão: quer quando está à espera (a imprevisibilidade previsível dos animais dentro do enquadramento; mas que aventura nova para o espectador...), quer quando se faz de Tati/Keaton, coreografando uma procissão numa aldeia - o tal plano-sequência pendular, virtuoso, sim, mas humilde, atento à escuta da zona de contacto que pressente. Entremos no templo de Michelangelo Frammartino. Em procissão.

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