American cancan

Um grupo de artistas de "burlesque" e o seu empresário. Selvagem e melancólico. E vampírico. A ficção bebe a energia do documentário

Um grupo de "strippers" generosas e o seu empresário. Como se ele, interpretado por Mathieu Amalric, tivesse posto bigode para poder estar à altura delas, sonho de menino a fazer-se homem com raparigas grandes, com exemplares do "burlesque" americano que dão pelo nome de Mimi Le Meaux, Kitten on the Keys, Dirty Martini... Pensem em Dita Von Teese, pode ser, mas a generosidade de formas, aqui, tem menos a ver com o design escultural, é mais rebelde...

Um pouco, ou muito, de "The Killing of a Chinese Bookie", de Cassavetes - naquela forma de alguém estar metido com a sua vertigem, com a sua perda, com a fuga (não se sabe se corre para algo ou se foge de si mesmo, uma genealogia que recentemente desembocou, por exemplo, no "Go Go Tales" (2007) de Abel Ferrara.)

Algo de Renoir, ou seja, uma generosidade no olhar e na(s) forma(s) - este é o "French Cancan" de Amalric.

E Fellini, porque não?, naquela maneira de Joachin (o nome da personagem de Amalric) estar numa infância eterna, atraído por criaturas de seios grandes, de carne e de luz.

Amalric interpreta este empresário de um show de "burlesque" que regressa a França com as suas artistas, recrutadas nos EUA. Está disposto a vencer em casa. Que abandonou, escorraçado pelo novo showbusiness (é de um tempo que terminou e dos que nele insistem e perdem que fala, obviamente, este filme.) Ali quer regressar, ambicionando acabar a tournée do "american cancan" por hotéis esquecidos com um espectáculo que faça dele vencedor em Paris - onde nunca chegará, aliás, porque a vingança de Joachin está como ele: cansada.

(Parêntesis: Joachim esteve para ser interpretado pelo produtor português Paulo Branco, forma de Amalric homenagear criaturas que o fascinam, os produtores de cinema, "a sua loucura e a sua coragem", como disse numa entrevista; e sobretudo um certo tipo de personagem que se mantem como "príncipe" mesmo "não tendo reino nem, sobretudo, poder").

O resultado está em trânsito entre o documentário e a ficção, é selvagem, é melancólico. Amalric faz de "Tournée" um filme em "tournée". Desde logo porque os shows de "burlesque" foram filmados com público a assistir, em "tour" pela costa francesa, coreografia das próprias artistas. Depois, pelo movimento entre a ficção esquálida e terminal (Joachin, o seu bigode, a sua palidez), a precisar de se alimentar, coisa vampírica, e a generosidade documental daquela "troupe".

É um movimento sensualíssimo que se evidencia logo nos planos de abertura, naquelas entradas de corpos, naquelas intromissões e esperas, naquele retrato de grupo que se forma, que se atrai. É um pequeno teatro do que vem a seguir, que se expande a seguir: a expectativa de Joachim/Amalric a pedir que o acolham e a vitalidade delas - "Tournée" desvia-se e ao mesmo tempo alimenta-se da base, a que regressa como quem procura o conforto e segurança.

O que quer que signifique o grito rock'n'roll final, ele sinaliza, antes de tudo, o "tour de force" de um cineasta.

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