A via sacra e a via láctea

Primeira grande surpresa de 2011, "Camino" invoca o espírito de Luis Buñuel numa sátira devastadora (em todos os sentidos da palavra) ao fundamentalismo religioso

Ponto prévio: todas as pragas que se possam rogar à distribuidora responsável não serão suficientes para lhe perdoar. Ter "Camino" em carteira há mais de dois anos sem o estrear pode-se perceber - é difícil saber o que fazer com um objecto tão "fora" -, mas se era para o deixar num limbo estreia-não-estreia mais valia não o ter comprado. Supostamente, quando uma distribuidora adquire os direitos de um filme é porque acredita que existe um público para ele - e "Camino" está muito longe de deixar incólume quem o vê, independentemente de se gostar ou não.


Ainda por cima, a terceira longa de Javier Fesser chegou de Espanha como triunfador da cerimónia dos prémios Goya (os Óscares locais) de 2009 e com controvérsia incluida, ou não se inspirasse no caso verídico de uma menina espanhola que está em processo de canonização, cuja família se ergueu em armas contra o filme. Talvez estejamos a olhar para as coisas de modo um pouco forçado, mas sem querer comparar o incomparável a verdade é que sentimos em "Camino" qualquer coisa de Buñuel a passar. Ou, antes, de dois Buñuel: o Buñuel "mexicano" que subvertia a todo o momento as regras clássicas do melodrama, e o Buñuel corrosivo e anti-clerical de "Viridiana", que não hesita em denunciar a hipocrisia que se esconde por trás do fundamentalismo.

Porque o que torna "Camino" tão murro no estômago é precisamente o modo como Fesser habita as convenções do melodrama religioso com um respeito enorme, ao mesmo tempo que as critica e descarna sem piedade. É um filme que está sempre a funcionar em dois graus de leitura simultânea, com uma lealdade absoluta para com o espectador, e consegue chegar ao fim sem nunca esconder nem trair nenhum deles. E isso é obra quando está a fazer humor (negro, é certo), com coisas muito sérias.

As coisas muito sérias são, aqui, os últimos meses de vida de uma menina devota, filha de uma família muito religiosa da Opus Dei, a quem é diagnosticado um cancro terminal muito avançado no exacto momento em que se apaixona à primeira vista pelo primo de uma colega. O filme vai e vem entre as fantasias tecnicoloridas de Camino, que sonha ser feliz com o seu novo amor (que, pormenor muito importante, também se chama Jesus, abrindo uma dúvida metódica que o filme não se coíbe de explorar), e a sua dolorosa via sacra, que não se limita às operações e a tratamentos brutais, mas descreve também uma vida familiar rigidamente religiosa, comandada com mão de ferro por uma mãe fundamentalista à qual o pai não tem forças para se impor.

Que não se pense que a irrisão subversiva de Fesser torna "Camino" num panfleto - o realizador (igualmente argumentista e montador) prefere transformá-lo numa sátira brutalmente corrosiva ao fundamentalismo, venha ele de onde venha, e ao preço que ele cobra em termos pessoais; que questiona até onde o sacrifício em nome de uma causa justifica a supressão da individualidade. Camino não tem liberdade para se divertir como as colegas do colégio, e uma vez a sua doença diagnosticada essa possibilidade é-lhe retirada para sempre; o estado de absoluta clausura, quase inquisitorial, que Fesser pinta nas relações dos Fernández com a Igreja, a hipocrisia e o calculismo que vêm ao de cima a espaços, são os elementos mais perturbadores do filme, embora o cineasta resista sempre a converter os beatos em monstros desumanos (permitindo a quase todos eles momentos de dúvida e humanidade).

Interpretado extraordinariamente por um elenco notável e dirigido com grande habilidade e inteligência, "Camino" é um filme duplamente poderoso, pelo modo como pega num tema duríssimo "pelos cornos" e dele faz uma espantosa afirmação de vida e amor sem perder a violência de uma sátira atenta, resistindo sempre ao golpe baixo. Esta estreia quase clandestina é a primeira grande surpresa que chega às salas em 2011.

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