Sócrates, o grande revolucionário do marketing político do PS

Foto
José Sócrates Daniel Rocha/arquivo

Artigo científico sobre as campanhas eleitorais socialistas mostra como primeiro-ministro assumiu o poder e se tornou mestre da política na era da televisão.

Quem conhece o ofício e conhece o primeiro-ministro, sabe que é assim: no país haverá meia dúzia de bons profissionais de marketing político, sendo que José Sócrates é um deles, porventura o mais habilitado. É por isso que raramente deixa nas mãos de terceiros decisões estratégicas sobre a sua imagem. Quando é preciso, ouve quem tem de ouvir, num círculo ditado pela confiança e pelo profissionalismo. Mas manda às urtigas a pluralidade das sensibilidades socialistas e das estruturas internas do partido e decide pela sua cabeça frequentemente em sentido oposto, quase sempre de forma eficaz.

Até há pouco tempo, esta tese era repetida quase sempre por fontes anónimas, próximas do Governo ou ligadas à consultoria política. Mas deste o mês passado há um documento que confirma e sugere este modo de actuação. Um estudo publicado na revista Análise Social, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no mês passado, mostra a evolução das campanhas do PS desde 1975 até 2005, sugerindo três conclusões sobre o caminho seguido pelo primeiro-ministro: Sócrates herdou de Guterres a preocupação com a televisão, acentuou a personalização das campanhas eleitorais e criou um núcleo duro fora dos órgãos partidários onde pela primeira vez surge a figura do campaign manager, um consultor externo, no caso Luís Paixão Martins, da LPM, com grande poder na definição da estratégia.

Da autoria de investigador Marco Lisi, o artigo intitulado Ao serviço do líder: as campanhas eleitorais do Partido Socialista que é o primeiro esforço académico para penetrar no mundo do marketing politico-eleitoral do PS dá voz a alguns dirigentes que lidaram de perto com a organização de campanhas socialistas no pós-25 de Abril, entre eles Alberto Arons de Carvalho, António Guterres, Alfredo Barroso e António Campos.

Curiosamente, contudo, nota-se a ausência das pessoas mais próximas de José Sócrates. "De facto, nas entrevistas que conduzi sobre o PS, a parte mais díficil foi ter acesso aos colaboradores mais próximos de José Sócrates, apesar das numerosas tentativas nesse sentido", afirmou Marco Lisi ao PÚBLICO. Para o investigador, essa dificuldade deveu-se a dois factores: o facto de Sócrates estar no Governo e de se ter passado muito pouco tempo desde as últimas eleições.

Marco Lisi contorna este handicap através de outros depoimentos, nomeadamente de Marcos Perestrello e João Vasconcelos, que, não sendo do círculo mais íntimo do primeiro--ministro, acompanharam de perto as suas campanhas. Mas pode-se dizer, hoje, que esse silêncio é, por si, um aspecto distintivo da forma como o primeiro-ministro blinda e gere a sua comunicação pública: nunca, como nesta legislatura, terá saído para a imprensa tão pouca informação governamental não autorizada ou inconveniente.

A reacção a Ferro

Embora a colaboração do publicitário Edson Athayde com António Guterres, nas legislativas de 1995, tivesse significado um momento de ruptura dentro de um PS até então agarrado a burocracias e hierarquias internas, a "transformação das campanhas centradas no partido em campanhas centradas no líder" ganhou novo significado com Sócrates. Esta constatação é tanto mais relevante quanto refere o autor "estudos anteriores sobre partidos de esquerda (como o Labour Party, o Partido Socialista francês ou o SPD alemão) constataram que é nesta família política que emergem as maiores resistências à personalização, ao uso de especialistas externos e à crescente centralização".


Ao contrário do PSD e do CDS-PP, a esquerda, mesmo a esquerda moderada, sempre teve mais pudor ou julgou inconsequente a marketização da política mesmo já no século XXI e mesmo já após o sucesso da dupla Edson Athayde/Guterres. Ferro Rodrigues foi um exemplo dessa resistência.

Em 2002, com o ex-ministro do Trabalho e da Solidariedade a secretário-geral, Edson Athayde passa a ter um papel "notavelmente mais limitado".

Ferro coloca nas mãos dos dirigentes socialistas em quem tinha mais confiança toda a organização estratégica da campanha para as legislativas desse ano: António José Seguro é o coordenador da campanha, António Costa fica responsável pelo programa eleitoral e Paulo Pedroso é o porta-voz do partido e quem escreve os discursos do líder.

Deste esquema, apenas duas coisas permaneceram durante o mandato de Sócrates: a ideia de um núcleo duro junto do líder, formado à margem dos órgãos do partido, e a importância que António Vieira da Silva tinha como consultor político do secretário-geral e que manteve com José Sócrates.

De resto, praticamente nada do legado de Ferro restou.

O teleponto prodigioso

Ainda que Guterres tenha significado uma verdadeira ruptura dentro do PS, Sócrates refinou o cuidado com o marketing político e com a sua intervenção pública, acrescentando algumas inovações. Uma delas foi a estreia do uso do teleponto na política portuguesa, no Congresso Nacional de Guimarães, em Outubro de 2004. Faltavam na altura cerca de quatro meses para as eleições e a encenação desse momento foi marcante.


O primeiro-ministro haveria de contar que, na origem dessa bem sucedida relação homem-máquina, esteve uma performance de Tony Blair, a que Sócrates assistira e que o surpreendera pelo brilhantismo.

Assumindo não ter o poder oratório de outros políticos portugueses citou Manuel Alegre, e tendo tomado conhecimento da técnica que ajudara Blair naquela prestação memorável, o primeiro-ministro logo indagou da possibilidade de importar um teleponto.

Domingos Ferreira, um funcionário do PS, militante, que acabou por fazer carreira privada como empresário na área da produção de eventos, nomeadamente de comícios socialistas (foi ele quem produziu, por exemplo, o grandioso comício "à americana", como lhe chamou Manuela Ferreira Leite de rentrée de Sócrates em Guimarães, no mês passado), acabaria por conseguir a prenda pedida pelo primeiro-ministro.

Na versão de Sócrates, a máquina chegaria na véspera do seu discurso, razão pela qual o primeiro-ministro praticamente não ensaiou o engenho e levou a intervenção escrita para o palco, por segurança.

Outra das sofisticações de Sócrates foram as sondagens diárias, também conhecidas como tracking polls, e desde há muito usadas nos EUA.

Como refere o estudo de Marco Lisi, elas eram "conduzidas em segredo por uma empresa externa", mas seria Jorge Coelho, coordenador da campanha, quem indicava as perguntas e depois analisava os resultados. A cada momento, o núcleo duro de Sócrates podia assim sentir o pulso da população.

"As técnicas de investigação sobre a opinião pública tornaram-se progressivamente um instrumento fundamental para definir as linhas gerais das campanhas e obter um certo feedback das acções desenvolvidas pelo partido", sustenta Lisi.

Associadas às sondagens, para uma impressão mais fina sobre o que pensava o eleitorado, recorreu-se ainda a uma outra técnica: os focus group, na prática grupos de potenciais eleitores chamados a pronunciar-se sobre política e sobre o país.

Numa altura em que no Largo do Rato já se começa a trabalhar na próxima campanha eleitoral, é muito provável que tudo isto seja repescado e reinventado. A LPM, de Luís Paixão Martins, já está a trabalhar a marca PS, nomeadamente refazendo o site do partido. Também o recente congresso do PS, em Guimarães, pela sua espectacularidade, deixa antever que Sócrates voltará a marcar pontos no marketing político em Portugal.

Com crise ou sem ela.

Texto publicado no PÚBLICO em 23 de Novembro de 2008
Sugerir correcção
Comentar