Judaísmo para coleccionadores

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Não é tudo o que sempre quisemos saber sobre o judaísmo, mas quase: os seis primeiros títulos da Judaica, a nova colecção de livros da Cotovia, compõem o retrato de um mundo fascinante, e nalguns casos perdido, de Belmonte ao Cairo, de Auschwitz a Israel

Quem viu "Fantasia Lusitana", o magnífico documentário sobre o Estado Novo que João Canijo estreou há cerca de um ano, sentiu um mal-estar: o do nosso isolamento. Vemo-nos a comemorar a Exposição do Mundo Português de 1940 e sorrimos, condoídos dos portugueses de então, perante a Nau que, mal é lançada, se afunda. Portugueses que alegremente admiram as peças expostas (homens e artefactos) trazidas do Império, enquanto por Lisboa passa uma horda de gente cosmopolita, desesperada, à espera de um sinal para prosseguir: refugiados judeus de uma guerra que nos "poupou" graças a Salazar, que nos mantinha na periferia do mundo convulso, e à Senhora de Fátima (e à vontade dos Aliados, claro).

Tudo isto vem a propósito de judaísmo e de judeus. Não teremos sido anti-semitas, apesar do fantasma da Inquisição que nos amordaçou irreparavelmente o pensamento e a destreza económica. Habilmente, na época, D Manuel recebeu os judeus expulsos pelos reis católicos no século XV. Alguns anos depois, não os deixando partir, baptizou-os, destruiu os seus vestígios, materiais e imateriais, queimou os preciosos livros que haviam trazido, arrasou sinagogas (que alfacinha conhece a topografia das três que existiram em Lisboa?), fez deles cristãos-novos, alguns futuros marranos. Mas a história e a cultura judaicas contemporâneas, as suas rotas mais recentes, os crimes cometidos sobre populações da Europa Central e Oriental (seis milhões cientificamente exterminados), o gozo da música klezmer e das recriações do riquíssimo teatro iídiche, a degustação da gastronomia asquenazita ou sefardita, tudo esteve ausente ou esbatido nas nossas vidas, nas nossas livrarias, nas nossas conversas e até na universidade. Também Salazar, segundo Irene Pimentel (Prémio Pessoa 2007, autora de "Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial") reforçou, a todos os níveis, o nosso isolamento. "Algo está felizmente a mudar, o interesse e a curiosidade parecem ter sido revigorados", diz a investigadora ao Ípsilon. A colecção Judaica, que a Cotovia acaba de lançar, é disso prova: para já são seis títulos (de Samuel Schwarz a Karl Marx, de Primo Levi a Moacyr Scliar), um leque bem diversificado que André Jorge inteligentemente seleccionou, e que até fisicamente se deseja possuir. Dirigida a um público curioso, mas não necessariamente especialista, a colecção reúne obras de judeus religiosos, judeus ateus, judeus críticos de judeus... Cada um dos livros da colecção firma uma perspectiva, é a estrela de múltiplas faces de uma constelação que será certamente expandida.

No blogue da Cotovia, o editor, que nasceu numa vila perto de Lisboa no fim da Segunda Guerra Mundial, escreve um texto programático muito pessoal, lembrando que a família, oriunda da Beira Interior, o criou sem resquícios de educação católica, sem calendário religioso, apesar da admiração que o pai tinha pelos judeus ("Hoje pergunto-me se isso não será um traço de judaísmo, esconder uma coisa sem se converter a outra"). "Sou ateu convicto. É verdade que tenho um candelabro judaico em casa, mas isso é um símbolo; uma homenagem aos antepassados, uma quase presença deles. Sou ateu, não tenho a menor dúvida a esse respeito. Até na doença sou ateu. Sinto que é necessário recordar sempre os grandes crimes contra a humanidade. Todos. Esta colecção vem daí, dessa minha necessidade tornada convicção", explica.

Jorge Martins, investigador e coordenador de outra colecção mais antiga, a Sefarad (Nova Vega), aplaude a iniciativa da Cotovia: "Estão de parabéns os estudos judaicos, que têm levado algumas editoras a apostar nesta temática, provando que é uma necessidade historiográfica e um projecto comercial viável. Quantas mais editoras publicarem sobre esta temática - e com esta dignidade de lhe conceder uma colecção própria -, mais visibilidade terão os estudos judaicos". O entusiasmo é partilhado por Borges Coelho - autor de "A Inquisição de Évora 1533-68" (Caminho) -, Avraham Milgram, historiador do Museu do Holocausto Yad Vashem de Jerusalém, que escreveu "Portugal, Salazar e os Judeus" (Gradiva), Richard Zimler ("Os Anagramas de Varsóvia", edição Oceanos) e Esther Mucznik (estudiosa de temas judaicos e autora de "Gracia Nasi", Esfera dos Livros).

De Belmonte ao Cairo...

Dos livros agora editados, comecemos por Samuel Schwarz (1880-1950), autor de "Os Cristãos-novos...", publicado originalmente em 1925. Engenheiro de minas polaco, trabalhava em Espanha e, pass(e)ando por Belmonte, detecou um rasto judaico nalguns usos e nas orações das gentes. Abeirou-se, apresentou-se como judeu, os habitantes foram esquivos. O medo (como diz Irene Pimentel, devia ser feita em Portugal uma História do medo...) e o silêncio sedimentados fá-los-iam recuar: '"Visto que pretende conhecer outras orações judaicas, diferentes das 'nossas', diga-nos, ao menos, uma das que conhece nessa 'língua hebraica' mque diz ser a língua dos judeus!...'(...) Ocorreu-nos, então, a feliz ideia de recitar a sublime oração de 'Shemah Israel', base da religião judaica (...). Notámos, quando pronunciámos a palavra 'Adonai', que as mulheres tapavam os olhos com as mãos e ao acabar de recitar a breve oração, a anciã, que nos tinha convidado a rezar, disse, com autoridade, para as que a cercavam: "É realmente judeu, porque pronunciou o nome Adonai'".

A partir daí, Schwarz passa a ser admitido na comunidade de Belmonte e a fazer uma cuidada recolha, tornando-se talvez no maior conhecedor dos cristãos-novos da época moderna. "A sua obra constitui até hoje uma jóia sobre a cultura, os costumes e as preces dos cristaõs-novos do inicio do século passado", sublinha Avraham  Milgram. Mas é uma jóia que esteve demasiado tempo esquecida, acrescenta Esther Mucznik, lembrando que, regressada a Portugal depois de vários anos de ausência, investigou em vários arquivos e em nenhum deles se deparou com o nome de Samuel Schwarz. Tampouco a Comunidade Israelita de Lisboa possuía os seus livros. Quando os encontrou, Mucznik percebeu que Schwarz foi "um homem importantíssimo" para o judaísmo português. "Polaco até ao fim, mas português, é um homem que compra com o seu dinheiro a sinagoga de Tomar, que na altura é um armazém, que a restaura com o seu dinheiro e que a oferece ao estado português na condição de se fazer lá um museu. Foi ele quem que revelou ao mundo o marranismo português, e a sua reedição é uma excelente iniciativa", sublinha. António Marques de Almeida, que ocupou vários anos a cátedra de Estudos Sefarditas da Faculdade de Letras de Lisboa, é mais prudente: Schwarz, argumenta, deparou-se com uma atmosfera sincrética, o cripto-judaísmo, e deu-lhe um sentido. Mas "o que viu não é o que escreveu".

Da jornalista brasileira Helena Salem (1948-1999) - uma judia sefardita de origem turca que chegou a viver exilada em Portugal com o marido, dirigente do Partido Comunista Marxista-Leninista do Brasil) - publicou-se "Entre Árabes e Judeus". É a reportagem da Guerra do Yom Kippur que Salem realizou em jovem para o "Jornal do Brasil", a partir do Cairo, do lado de árabes e palestinos, indignando a colónia judaica carioca: "Como judia sefardita, estava tão à vontade naquele mundo... que o meu segredo, até, ia ficando menos pesado". Salem possui um estilo rápido, juvenil, ofegante quase, intercalado por breves memórias pessoalíssimas ou por reparos casuísticos aos sabores do mundo em volta (inevitável pensar, ao ler, na repórter do PÚBLICO Alexandra Lucas Coelho). É quase como se o leitor tivesse acompanhado aquele "travelling", sofrido com aquelas pessoas, e tomado como seus as ingenuidades, as hesitações e os reparos à condição feminina de ambos os lados. "Para mim a vida dela é um acto de coragem. Coragem para ter também aquela visão, que não era a minha", diz Mucznik, que conheceu Salem na Albânia. "A nossa amizade foi muito bonita, ensinou-me muito. Publicar os livros dela é uma homenagem a uma mulher que foi cobrir a guerra do lado árabe".

... e de Auschwitz a Israel

Moacyr Scliar (1937-2011), grande ficcionista, já editado entre nós, que acaba de desaparecer, e Bernardo Sorj (1948-), director do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e professor de sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, são ambos brasileiros, são ambos de origem judaica, são ambos profundos conhecedores da história e da cultura do judaísmo. A obra de Scliar, gaúcho, filho e neto de imigrantes, nasce marcada pelo imaginário judaico-cristão e pelas estórias que a mãe, professora que o alfabetizou, desfiava e lhe incendiavam a imaginação. Ambos traçam a história do povo judeu, articulando o texto bíblico, o patamar sagrado, com o relato histórico. Em "Judaísmo - Dispersão e Unidade", de Scliar, isto resulta, como seria de esperar, num timbre mais literário (tem também um capítulo sobre os judeus no Brasil). "Judaísmo para Todos", de Bernardo Sorj, acentua o olhar mais sociológico. Tanto um como o outro partem do começo mítico ("E disse o Senhor a Abraão...") até à criação do Estado de Israel, investigando a origem histórica do anti-semitismo - que, ao contrário do que muitas vezes se julga, não surgiu com o cristianismo mas sim com os romanos. Cada um a seu modo, levantam os problemas inerentes a Israel, país que emerge depois do massacre irreparável de um mundo, o Holocausto, a Shoah. O novo Estado, saído de uma des-diasporização, multicultural (muito mais do que uma origem tem o cidadão de Israel), fragmentado e pós-moderno, deve ser capaz de construir uma identidade judaica secular, sem apagar a memória, mas gerando "novas narrativas e (...) práticas, sem reproduzir conteúdos xenofóbicos e alienantes das categorias de pureza e impureza, de povo escolhido, de protecção divina", refere Sorj.

Apetece dizer que tudo o que sempre quisemos saber sobre o(s) judaímo(s) começa aqui, nestes dois autores.

Já a "A Questão Judaica", do jovem Karl Marx (1818-1883), é um obra provocadora e passional, panfletária, pouco marxista de espírito e até anti-semita. Abre assim: "Os judeus alemães aspiram à emancipação" (leia-se igualdade de direitos, direito à cidadania e à emancipação cívica e política, aspectos que no século XIX estavam na ordem do dia na França e na Alemanha). E continua "Vós, judeus, sois 'egoístas' ao exigirdes uma emancipação especial para vós, enquanto judeus (...). Devereis, sim, perceber que a vossa opressão e ignomínia não constituem uma excepção à regra, mas apenas vêm confirmar essa mesma regra". Marx faz equivaler o judeu ao culto a um só Deus - o da usura e da troca (de mercadorias). O judeu em Marx é, assim, emblema do dinheiro, do capitalismo, logo de burguesia (esta sua visão terá contribuído para o anti-semitismo de alguns movimentos revolucionários). Simplificando de mais: o judeu tem de deixar de ser judeu para que o Humano e o Estado livres da alienação possam nascer.

Curiosamente, Marx tem uma raiz judaica, a arquitectura desta cultura infiltrada. Quem sabe se o pós-ditadura do proletariado, "o mundo a seguir", brinca Esther Mucznik, "não seria o reino messiânico?" Nada é simples, e este é um texto nuclear da história das ideias políticas, foco irradiante de muitos outros. Gostaríamos, todavia de o ver co-adjuvado por textos de Hannah Arendt como "The Jew as Pariah (Jewish Identity and Politics in the Modern Age)", de 1943, ou por outros seus sobre a temática do anti-semitismo. Assim como por Gershom Scholem e a sua polemica com Arendt a propósito do controverso "Eichmann em Jerusalém". Ou Daniel Sibony, nascido em 1942 no seio de uma família judia que habitava a Medina de Marraquexe, e chega a Paris aos 13 anos... psicanalista, matemático, filósofo e muito mais, autor de variadíssimos livros que integram questões do mundo, da transmissão e da cultura judaicas e exploram a tese de que o medo, o racismo e a violência aumentam quando "o Outro" não quer viver mais no "gueto" e exige devir juridicamente um cidadão "como os outros" (no caso dos judeus, era o que vinha acontecendo na Europa Ocidental, com interregnos, desde o século XIX).

Por fim, neste primeiro lote da colecção, há Primo Levi (1919-1987), autor dos "inteligentes e comoventes" livros que o escritor Richard Zimler sempre recomenda quando os leitores lhe pedem sugestões de livros sobre o Holocausto. Do italiano, a Cotovia publica "O Dever de Memória".

Claro que daqui para a frente se quer sempre mais, muitos mais... Agamben, Langbein, antologia(s) de poesia hebraica contemporânea, Sartre, ficção... que evoque os campos com a força da linguagem literária (como "Eine Reise" de H.G. Adler, que Canetti considerou "uma obra-prima, escrita numa prosa particularmente bela e pura").

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