Reportagem: Os jovens que são "shebab" por não terem nada a perder

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Aviação de Khadafi bombardeia os arredores de Ras Lanuf, cidade que tem uma importante refinaria Foto: Marco Longari/AFP

O dia não correu bem a Josuf. Saiu de casa de manhã, à procura do filho. "My baby", dizia ele, sem nenhuma pieguice, apenas porque fala mal inglês. Quando se pergunta a um líbio se fala inglês, a resposta é quase sempre a mesma, em árabe: "Khadafi não nos ensinou inglês".

O filho de Jusuf tem 18 anos. Gostaria de estudar no estrangeiro, mas o pai não tem dinheiro. Até agora, para descanso do pai, tem-se comportado como uma criança, e não como um "shebab". Mas ontem alguma coisa pode ter mudado.

Desde há alguns dias, Jusuf está a trabalhar como motorista para jornalistas estrangeiros. Não é a sua profissão, mas viu uma oportunidade de ajudar a revolução e ganhar algum dinheiro. De início, cobrava um preço razoável. Mas depois percebeu que todos os colegas estavam a pedir valores exorbitantes. Decidiu tentar a sua sorte, sem êxito.

A cidade de Ras Lanuf foi tomada pelos rebeldes na sexta-feira. Mas desde domingo que a sua perda é anunciada. As tropas da Khadafi recuperaram Benjawad, uma cidade 40 quilómetros a oeste, e começaram a ganhar terreno. Todos os dias foi dada como certa a entrada em Ras Lanuf. Mas a verdade é que, com avanços, recuos e muito sangue, os "shebab" se têm aguentado. Ras Lanuf ficou deserta, mas a resistência continuou na entrada da cidade e na zona da refinaria de petróleo.

"Shebab", que significa juventude, tornou-se a palavra identificadora da revolução. Os "shebab" são os "rapazes", o "povo". Na Líbia, há as forças de Khadafi e há os "shebab". Diz-se: "Os shebab tomaram Ras Lanuf", ou "Khadafi está a enviar aviões para matar os shebab", e há uma enorme energia afectiva na expressão. Até a forma como é dita lembra o tom em que um adulto fala a uma criança.

Josuf, com o carro cheio de jornalistas, pára sempre que vê um grupo de "shebab". Vai pedir informações, sobre os combates, os feridos. Mas exagera. Está sempre a perguntar coisas em todo o lado, perdendo tempo, e os jornalistas irritam-se. Não sabem de que anda o motorista realmente à procura.

A refinaria de Ras Lanuf continua a laborar. É um complexo imenso de tanques, tubos e chaminés, fumegando tranquilamente, entre o deserto e o mar. O seu nível de produção foi reduzido, mas os derivados do petróleo continuam a seguir para os seus compradores estrangeiros, e os pagamentos a serem feitos para as contas de Khadafi, apesar de a zona estar nas mãos dos rebeldes.

"Este lugar é um dos grandes produtores de petróleo do mundo", diz Mohamed Ali, 22 anos, habitante de Ras Lanuf. "É um dos principais portos, de onde sai petróleo para vários países. E no entanto em Ras Lanuf o hospital não tem condições, a escola não tem professores".

Mohamed fez um curso de técnico de ar condicionado e trabalha por 150 dinares (menos de 100 euros) por mês. Passou os últimos dias em frente à refinaria, com uma Kalashnikov. "Nós estamos aqui porque não temos nada na vida. Sou jovem e queria ter as coisas que um jovem gosta. Alguma roupa com estilo, um telemóvel último modelo, um perfume. Porque não posso ter isso?"

Para os jovens da Líbia, a revolução é uma evidência. Não há outro caminho, nem outra ideia. É disso que falam, é isso que fazem. Eles são os "shebab". Os pais sabem que é assim, e sentem orgulho. Ter um filho rapaz, na Líbia, é ser consciente de que ele vai querer morrer pelo país.

O hospital de Ras Lanuf tinha fechado, tal como o hotel e tudo o resto, na cidade. Mas ontem reabriu, porque muitos dos feridos não teriam tempo de chegar a Brega ou Ajdabia. Funcionava, com médicos, enfermeiros e voluntários, embora na iminência de cair sob o controlo de Khadafi. Há apenas uma entrada na cidade. Se o exército passar aquele ponto, Ras Lanuf fica isolada. Quem lá estiver, não escapa. Por isso a cidade está vazia.

Os feridos não paravam de chegar, ouviam-se as bombas a cair à volta e a tensão no hospital era extrema. As informações iam sendo trazidas pelos condutores das ambulâncias. "Eles estão a 20 quilómetros daqui", diziam eles ao princípio da tarde. Pouco depois: "Estão a 15 quilómetros daqui".

Onde está o mundo?

Um enfermeiro começou a gritar, para os jornalistas: "Onde está o mundo? Onde estão os EUA, onde está a Europa? Onde está a ONU?" E um dos médicos, Salem Langhi, 43 anos, disse que estava ali para morrer pela liberdade. "Eu não quero mais nada. Trabalhava na Irlanda, tinha um bom salário. Mas voltei porque tenho um filho neste país. Voltei por ele. Se eles entrarem aqui, terão de matar toda a gente".

Uma das bombas atingiu as condutas de abastecimento de água da cidade. Sem água, o hospital dificilmente conseguia trabalhar. E as forças inimigas estavam a avançar tão rapidamente que as ambulâncias já não chegavam aos feridos.

"Voltam para trás, e sabemos que os que tombaram do lado de lá não vão ter qualquer assistência", disse o médico. "Vão deixá-los morrer. A vida humana, na Líbia não tem qualquer valor". Alguém entrou a correr para avisar que as forças de Khadafi estavam a 10 quilómetros da cidade. Era preciso fugir dali.

"Deram-nos uma máscara", disse Salem Langhi. "E essa máscara é a de Khadafi. Em todo o mundo, os líbios são vistos como terroristas, assassinos. Agora queremos tirar a máscara. Dizer ao mundo que somos civilizados. Mostrar um novo rosto. Um rosto que nós próprios estamos a descobrir. Quem nem sabíamos que tínhamos."

Jusuf andava cada vez mais desleixado. Só pensava em parar para fazer perguntas. A dada altura, deixou os jornalistas à espera no carro, no meio de um bombardeamento, para ir buscar café a um grupo de "shebab". Um dos repórteres enfureceu-se e foi buscá-lo à força, atirando-lhe o café quente para cima.

"Eles estão a 5 quilómetros. Chegam aqui dentro de 15 minutos", disseram. Carros com famílias precipitaram-se para a estrada. Em frente à refinaria, os "shebab" faziam um comício. Havia quem achasse que deviam recuar. E quem achasse que era preciso ficar.

Jusuf meteu-se no carro e partiu para Brega a toda a velocidade. Durante toda a viagem, chorou em silêncio. Só já em zona segura voltou a parar para pedir aos "shebab" informações sobre o filho. "Saiu de casa hoje de manhã e não consigo falar com ele ao telefone", explicou. "My baby", dizia.

Corria de grupo em grupo, de chinelos, a cara roxa ao vento gelado, e quando repetia com voz suplicante "shebab, shebab", não se percebia se estava a referir-se ao filho ou aos guerrilheiros.

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