Edna O'Brien bate com uma mão e acaricia com outra

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Para Philip Roth ela é a grande escritora viva da língua inglesa. Para os leitores fiéis é das poucas escritoras que põe a carne das personagens à vista. Para os portugueses é o primeiro encontro: a Relógio D'Água acaba de editar o primeiro e o último romance de uma autora cuja carreira já vai em 50 anos

Se há alguém a quem o epíteto de "escritora emocional" cabe bem é a Edna O'Brien. "Emocional" é uma expressão redutora - usamo-la no sentido de uma escrita que vive de vísceras, em que o ritmo, a escolha das palavras indica uma relação epidérmica da autora com as emoções que constrói para as personagens.

Tudo na obra de Edna O'Brien é uma longa carnificina: corpos expostos ao desejo, culpa, neuroses, o mal que nos persegue ou o mal a que voltamos ou que provocamos. Em cada uma das suas páginas exsuda-se a febre que une e separa homens e mulheres, a incapacidade de superar o passado.

Em última instância, tudo nela se resume a essa coisa amaldiçoada que se abate sobre os humanos disfarçada de bênção: o amor, um amor que se infiltra em todas as pregas em que a vida das personagens se desdobra, um amor que não deixa as personagens em sossego.

Se quiserem: Edna O'Brien é outro nome para irreprimível inquietação. É a rainha das contradições, alguém que se dá uma chapada com uma mão, usa de imediato a outra para um afago (e vice-versa).

No seu caso quase temos dificuldade em separar a autora da obra. Da mesma forma que as suas personagens, por mais resistentes que sejam, estão constantemente expostas às forças da natureza, também nas suas muitas entrevistas ela é de uma auto-exposição tremenda. Por vezes as confidências surgem comoventes, outras quase que gostaríamos que ela tivesse um pouco de pudor. Mas o mais estranho da personagem O'Brien é a forma desassombrada como fala de assuntos (pessoais) terríveis - como falar desassombradamente de fantasmas?

Um adjectivo possível para a escritora seria "Byronesco". Não por acaso o seu mais recente livro (acabado de editar pela Relógio D'Água) é uma biografia de Byron, "Byron e o Amor", mas não no sentido tradicional do termo biografia: O'Brien escolhe um ângulo muito seu, o das relações amorosas do poeta inglês, mas acima de tudo o das suas relações com as mulheres, esmiuçadas ao milímetro - ao contrário das suas relações homossexuais, que são apresentadas de modo menos torturado.

Não se pode afirmar que "Byron e o Amor" vai ocupar um lugar fulcral na longa obra da escritora, mas não deixa de ser um belo livro, que se lê com uma rapidez imensa, fruto da depuração que O'Brien aqui atinge.

A ferida na infância

Contudo, esta não é única obra da autora a chegar recentemente às livrarias. Aproveitando a comemoração dos 80 anos da escritora a Relógio D'Água editou há meses "Raparigas de Província" (1960), o seu primeiro livro, que, com "The Lonely Girl" (1962) e "Girls In Their Married Bliss" (1964), forma uma espantosa trilogia. Os dois últimos serão igualmente traduzidos para português.

"Raparigas de Província" não só encerra em si toda a temática que O'Brien viria mais tarde a explorar e desenvolver como a tornou, desde o início, tanto uma estrela como uma inimiga a abater. A forma sem rodeios como o romance abordava o sexo valeu-lhe o ódio da Igreja Católica e a censura: o livro foi proibido, retirado das lojas e, segundo conta a lenda, chegou a haver gente que declarou que O'Brien devia ser queimada nua na rua. (Ao que O'Brien terá respondido: "Nua, porquê? Vestida não serve?")

A reacção acabou por "confirmar" o livro cujas personagens crescem numa comunidade pequena e rural da Irlanda, uma comunidade onde a tragédia e a violência espreitam por trás da aparentemente normalidade.

"Raparigas de Província" é um (duríssimo) romance de aprendizagem centrado em duas amigas, Kate Brady and Baba Brennan. Kate é filha de pai alcoólico e violento, que desaparece durante temporadas e gasta o dinheiro no jogo. O traço fundamental de Baba é o sonho de ascensão social que lhe é transmitido pela mãe.

Desde o primeiro parágrafo que o talento e traço únicos de O'Brien se revelam: uma escrita seca, precisa, ainda que pontuada por algumas imagens mais adornadas, estão ao serviço de um olhar meticuloso, dir-se-ia feminino, que tanto se demora nuns chinelos como no retrato de uma pessoa.

Atirando às malvas todas as regras de desenvolvimento de personagem e de tempo de entrega de informação, O'Brien faz-nos logo saber que o pai de Kate não tinha voltado a casa durante a noite e, no simples processo de Kate arranjar-se e ir comer, a autora consegue dar à casa contornos de horror físico (como se a casa fosse um ente assustador).

Avançando (sem adiantar pormenores que poderiam estragar o prazer da leitura), as duas raparigas (que partilham tudo entre si e se ensinam mutuamente nas artes da intimidade) vão para um colégio interno e daí para Dublin. Por entre a iniciação sexual das raparigas, o que acaba por estar aqui em causa é o retorno que elas têm pela sua coragem - parco retorno, diga-se: ambas procuram o amor, mas Baba está mais presa às ilusões que herdou da mãe que ao real, enquanto Kate é incapaz de se relacionar devido aos abusos paternos.

Uma lição possível seria concluir que o passado nunca vai embora. E de certa forma, pelo menos para a própria Edna O'Brien, isso parece ser verdade, já que os primeiros passos da sua biografia acabaram por tornar-se a impressão digital de toda a sua obra, que recorre incessantemente aos mesmos assuntos e motivos.

Exemplificando: ainda em 2002, em "The Forest", o protagonista é um assassino que cresceu solitário e foi vítima de abuso em criança. Gente solitária, esgaçada pela culpa, com um passado de hematomas, é isto que interessa a O'Brien. Uma solidão que por vezes lembra o que os psicanalistas chamam "Despersonalização", como é visível em "August Is a Wicked Month", em que a protagonista, Ellen, pensa "This is not me, I am not doing this".

Há razões para isto: por exemplo, as semelhanças entre a autora e a Kate de "Raparigas de Província" não são ocasionais. O'Brien também cresceu numa família modesta num tugúrio da Irlanda, em terras dominadas por misticismos, álcool, fanatismo religioso, violência, uma sociedade que proibia o divórcio, o aborto e os contraceptivos - uma sociedade, obviamente, machista.

Tal como a protagonista do seu romance de estreia, o pai de O'Brien era um alcoólico abusivo e a sua mãe submissa (pese embora não tenha morrido). E tal como as suas personagens, pode dizer-se que O'Brien esteve sempre em fuga (esteve sempre só): "Raparigas da Província" foi escrito quando se mudou para Dublin e não conhecia ninguém - como se habitar a violência do romance fosse a sua única hipótese de sobrevivência, como se "aquela" fosse a sua casa.

O assunto - a incapacidade de ultrapassar a ferida na infância - foi uma vez abordado por Philip Roth, que a entrevistou para o "New York Times" em 1984 (o texto pode ser encontrado em "Shop Talk", que reúne as entrevistas que Roth fez ao longo dos anos), quando lhe pergunta porque é que a epígrafe de "mother Ireland" é a belíssima citação de "Molloy" de Beckett "Let us say before I go any further, that I forgive nobody. I wish them all an atrocious life in the fires of icy hell and in the execrable generations to come." O'Brien respondeu que na altura em que estava a escrever "Mother Ireland" se sentia impiedosa acerca de muita coisa que tinha acontecido na sua vida. Quando Roth insistiu e procurou saber se alguém em particular seria alvo de mais ódio por parte de O'Biren esta nem piscou os olhos antes de responder: "Até ao momento em que morreu - que foi há um ano - era o meu pai".

Este quadro é ainda mais negro se adicionarmos o retrato da mãe, que O'Brien ofereceu sem que Roth lhe fizesse alguma pergunta: "Amava-a, sobre-amava-a, mas ela deixou-me por herança uma culpa total. Ainda a sinto por cima do meu ombro".

Não haverá uma razão exclusiva para alguém se dedicar à escrita. Mas quando pensamos que um romance pode demorar dois anos a escrever, que implica oito a dez horas de isolamento diário, temos que nos questionar, no caso dos escritores que se dedicam aos assuntos mais violentos e não fazem exercício de género, o que é que os moverá.

Citação de O'Brien, da mesma entrevista: "Tenho impressão que este agarrar-me ao passado é um desejo desesperado de o reinventar zelosamente". Aqui se vê a impotência de um romancista: por mais que quisesse reinventar um passado, O'Brien fez dele um monumento.

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