Encruzilhadas

A primeira ficção do documentarista russo é uma prova de resistência que raia o niilismo radical

Quem viu os documentários do russo Sergei Loznitsa exibidos no DocLisboa ou na retrospectiva que lhe foi dedicada na semana passada na Culturgest pode esperar reencontrar nesta sua primeira longa de ficção o ritmo, o tempo, até mesmo o formalismo (muito russo, diga-se de passagem), que eles revelam. Mas convirá deixar à porta da sala todas e quaisquer expectativas e estar preparado para embarcar numa viagem sem regresso ao "lado errado da noite", acompanhando um camionista em viagem de trabalho numa via sacra invertida onde não há redenção possível ao fundo do túnel.


É como se, à medida que o camionista vai mergulhando na Rússia rural, tivéssemos passado "do outro lado do espelho", entrando numa peregrinação Chauceriana que acompanha uma lenta "regressão" da civilização (mais ou menos) ocidental que revela aos poucos o verdadeiro rosto de um universo quase pagão, atávico, aleatório, animal, onde o teatro do horror quotidiano se transforma numa prova de resistência que raia o niilismo radical. E quando damos por nós estamos submersos num pesadelo sufocante e claustrofóbico do qual parece não haver saída.O título, evidentemente, deve ser lido como a mais negra das ironias de um filme que fervilha de desencanto e desespero. Alegoria da condição humana? Metáfora da moderna sociedade russa? Sim, talvez, porque não. Não há certezas neste filme, apenas encruzilhadas. Certeza só uma: "A Minha Alegria" ecoa muito do moderno cinema russo no seu abraço do absurdo e da irrisão, no seu trabalho sobre as formas (atenção ao trabalho de fotografia de Oleg Mutu, cúmplice de Cristi Puiu em "A Morte do Sr. Lazarescu" e "Aurora" - não é acaso, todos eles são grandes filmes de terror quotidiano).

Pode-se, se calhar, começar a falar de uma "nova escola russa" que abrangeria, para além de Loznitsa, Alexei Fedorshenko, Boris Khlebnikov, Alexei Popogrebsky ou Andrei Stempkovski - não seria de espantar, face ao olhar quase entomológico, lúcido, desencantado, que todos eles lançam sobre a Rússia moderna. Mas ninguém leva essa nova visão/versão da "alma russa" tão longe como Loznitsa. E "A Minha Alegria", estreia na ficção muito mais do que promissora, é um colosso de um filme que vai dividir, que vai intrigar, que vai fazer mais perguntas do que deixar respostas. Que se admira intensamente mais do que se entranha emocionalmente. E que não se vê - suporta-se.

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