Artefacto pop

É uma sequela mais que honrosa a um original visionário - mas é um filme do seu tempo onde o original estava à frente do seu

Há filmes que não têm de ser grandes filmes ou grandes obras para marcar o seu tempo - como aconteceu com o "Tron" original, que poucos viram à estreia em 1982 mas que profetizou o futuro digital do cinema de modo assustadoramente preciso.


Daí que esta sequela tardia seja um puro artefacto de cultura pop que, como é hábito, regurgita, recicla e rectifica as suas influências. Fá-lo a coberto de uma história de passagem de testemunho que elimina a necessidade de se ter visto o original, mas que espelha igualmente o modo como a cultura pop global se alimenta cada vez mais das imagens do passado - como o "Star Trek" de J. J. Abrams fazia, relança os dados da mitologia "Tron" ao mesmo tempo que respeita a linhagem em que se inscreve e cita com conhecimento de causa outros clássicos da ficção científica.

Não por acaso, o argumento foi escrito por dois "delfins" de Abrams, Edward Kitsis e Adam Horowitz, que trabalharam na série "Perdidos", e conta (tal como "Star Trek") uma história de pais e filhos. Aqui, o filho do herói original, órfão rebelde em busca do pai desaparecido há vinte anos, é transportado para dentro do computador para aí descobrir um "novo mundo" digital e tornar-se num libertador improvável da tirania perfeita de um programa corrupto e xenófobo.

Portanto, já percebemos que não é preciso ter visto o original para desfrutar de "O Legado", mas quem viu "Tron" gostará de o ver respeitado e regularmente citado - até demais, porque muitos dos momentos do "novo" "Tron" são expansões actualizadas de momentos do "velho" (os jogos de arena, as motos de luz, o veleiro solar, o portal entre os mundos). Obviamente, "O Legado" tem a tecnologia mais sofisticada que o dinheiro pode comprar e, em Joseph Kosinski, estreante vindo da publicidade e afilhado de David Fincher, um realizador que a sabe usar - até para colocar Jeff Bridges, retomando o seu papel no original, a contracenar com uma versão digitalmente rejuvenescida de si mesmo (e a única coisa melhor do que um Jeff Bridges é, mesmo, dois Jeff Bridges, sobretudo quando um deles é uma versão actualizada do seu Dude do "Grande Lebowski").

O que lhe falta, apesar disso tudo, é muito simples: o frémito visionário que reconhecíamos no original, a sensação que estávamos a ver qualquer coisa que nunca ninguém tinha visto antes e que não sabíamos onde nos ia levar, aqui substituída por uma sucessão de visuais glacialmente impressionantes que se assemelham em demasia ao que estamos habituados a ver no moderno "blockbuster".

Isto não deslustra em nada a inteligência de que "Tron: O Legado" faz prova - não só, pelo meio da mediocridade reinante em Hollywood, o filme faz figura de cíclope em terra de cegos, como a tentativa de ressuscitar um objecto de culto para lhe dar o reconhecimento que nunca teve é francamente louvável. É um belo artefacto pop, um filme muito do seu tempo - mas isso não chega para o erguer ao nível de um pioneiro visionário e vanguardista.

TrailerTrailer 1982
Sugerir correcção
Comentar