Francisco Lopes, o funcionário idealista que quer ser Presidente

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Francisco Lopes fotografado na Soeiro Pereira Gomes Foto: Daniel Rocha e Nuno Ferreira Santos

De Vinhó a Lisboa. Da janela de casa à janela do eléctrico. Da pobreza à opulência. Francisco Lopes quis desde sempre que linhas paralelas se cruzassem. O homem que é agora candidato à Presidência da República respirava a causa antes de respirar o partido.

Andavam ali a cortar pinheiros adultos e ele, pequenito, sentado numa cadeira à janela - a minha mãe contava isto muitas vezes -, a preocupação dele era a preocupação com a natureza e que os homens eram maus. Ele mal falava ainda, era um gajo especial." Fausto Lopes sorri enquanto vai buscar às memórias da família os primeiros sinais das inquietações que iriam pautar a acção do irmão mais velho ao longo da vida, Francisco, agora candidato à Presidência da República.

Da aldeia de Vinhó, em Arganil, até à Rua de Soeiro Pereira Gomes, sede do Partido Comunista Português (PCP), em Lisboa, foi um percurso em velocidade acelerada. Aos seus olhos, os rasgos diários da injustiça social vão-lhe parecendo cada vez mais chocantes. Francisco Lopes, de 55 anos, recorda os vestígios desse Portugal arcaico e amordaçado: "As questões do ensino, os problemas do fascismo, a guerra colonial, a falta de liberdade e a repressão. É um conjunto de problemas de que se toma conhecimento. Identifico-me com a necessidade de intervir."

Em 1973, com 18 anos, já não tinha dúvidas. Foi com essa idade que deu os passos que resolveram a sua vida. No Instituto Industrial de Lisboa, passa à prática aquilo que, nas palavras de Apolónia Teixeira, deputada comunista à Assembleia Constituinte e mais tarde à Assembleia da República, estava desde sempre "ali a fermentar".

Ao longo de nove anos longe dos pais, que o tinham enviado para Lisboa para estudar, vai tomando "primeiro uma consciência social e depois política". Retratos de uma Lisboa dividida que o impelem a agir: "Uma coisa que me marca é ver as diferenças sociais, que eram gritantes quando vinha de eléctrico. Vinham muitos trabalhadores e operários para as fábricas na Rocha do Conde de Óbidos e viam-se as diferenças entre a opulência, de um lado, e as condições que esses trabalhadores tinham, do outro", recorda ao P2 Francisco Lopes.

Incomodava-o em Lisboa aquilo a que já assistia em Vinhó, tantos anos antes. "Era frequente ver crianças na escola descalças, sem ter praticamente o que vestir", lembra. Se a família Lopes não era abastada, também não estaria entre as que viviam com maiores dificuldades. Mas, para Francisco, a diferença estava lá, como explica o irmão: "Ele, desde miúdo, teve sempre essas tendências. Era mais do coleccionismo, enquanto eu era mais da fisga." Os pais eram gente humilde. Mas cujasopções haveriam de ajudar a fazer do homem o comunista que é hoje. Era deles a loja da aldeia, "que, além de ser um estabelecimento, era um ponto social." Aí, o pai "lia à populaça" o jornal O Século, que chegava pelo correio, a quem queria saber das notícias do dia anterior.

Um idealista na família

Quando chega ao Instituto Industrial, está pronto para aderir, divulgar, colar. Para a família, já se tinha tornado óbvio. "Ele não falava de outra coisa, como deve calcular", recorda, divertido, o irmão do meio. Que vai buscar outro episódio marcante, tanto para a vida de Francisco Lopes, como para a vida do país: o Congresso da Oposição Democrática, em 1973, em Aveiro, que a GNR tentou impedir, mas que Francisco Lopes conseguiu fintar.

No regresso a Lisboa, a paragem em Coimbra surpreendeu Fausto. A visão do irmão com uma boina basca, num entusiasmo crescente para "mudar as coisas", confirmava os receios de que ele andava "outra vez metido naquelas merdas". A mãe partilhava da angústia que consumia a família e alertava-o, recorda Francisco: "Vais desgraçar-te!". Era ela que agora punha o barco a andar, era ela que, com sacrifício acrescido pela morte do marido, suportava os estudos dos dois filhos mais velhos, um em Lisboa, outro em Coimbra e outro consigo, Carlos, na aldeia. Um curso e uma profissão eram o desejo de uma mãe, que pressentia que a luta política de Francisco o podia levar aos calabouços da PIDE, a polícia política do regime de Salazar: "Antigamente, ser preso era das piores coisas que podia acontecer. A minha mãe não entendia, "porquê ele?"." Afinal, diz Fausto, "ninguém quer um idealista na família".

O idealista deu nas vistas assim que chegou ao Instituto Industrial, em 1972, onde estudava para se tornar electricista. Jovens que tinham as mesmas origens e o mesmo olhar sobre as injustiças sociais. O preço das refeições na cantina ou a ausência de uma associação de estudantes davam o mote à participação. "Nós fazíamos reuniões gerais de alunos e identificávamos logo os estudantes que tinham coragem de ficar na reunião e os que não tinham, os que aderiam à greve ou não, os que participavam", recorda Apolónia Teixeira, que o recrutou nessa altura para a União de Estudantes Comunistas.

O currículo de militante antifascista começa a desenhar-se no ano cheio de 1973. Foi três vezes detido para identificação, entre outras razões, por andar a"colar cartazes em Moscavide".Já era conhecido da polícia política: "Um dia, tivemos a surpresa da entrada da PIDE pela casa adentro. Uma daquelas coisas que também ficam registadas para a vida", recordaFrancisco Lopes. Levaram-lhe desde os livros de Lenine até à Revolução Sexual de Wilhelm Reich, mas não encontraram os panfletos do Avante! que o podiam atirar para a prisão. Salvo pelo cuidado do primo, que guardara os exemplares do órgão oficial do PCP em lugar seguro, chegara então o momento de Francisco começar a agir de acordo com as suas inquietações.

Acumula os estudos com a entrada na Applied Magnetics, única empresa onde trabalha antes de entrar no PCP. Arménio Carlos, dirigente da organização sindical CGTP, recorda que, na altura, uma camarada do PCP já lhe falara num "rapaz de cabelo comprido" que tinha "posto tudo a mexer" na empresa, constituindo uma comissão de trabalhadores. "Está aqui um jovem que nós precisamos de trazer para o partido" e, no ano seguinte, Francisco tomava a decisão de condicionar a sua vida ao PCP: "Muito dificilmente pode desligar já a sua vida da vida do partido", avalia Arménio Carlos.

Até mesmo quando se refugia em Vinhó para "retemperar energias", os amigos que convida para almoçar não fogem à esfera comunista. "A maioria dos amigos dele que vem aí, no fim-de-semana, é do partido", admite o irmão. As conversas políticas não vêm à mesa do almoço, mas trocam-se alguns "galhardetes". Na verdade, Fausto não quer mesmo saber: "Eu não analiso o percurso do meu irmão, passa-me ao lado. Eu quero vê-lo como meu irmão. O resto não me interessa."

O percurso de Fausto fica a milhas do do irmão. Tornou-se empresário e, de Arganil, aterrou em Inglaterra, onde chegou a ter fábricas de têxteis. Hoje, trabalha no ramo imobiliário na terra em que nasceu e onde ainda vive. Fausto Lopes não tem dúvidas de que Francisco é desprendido:"O meu irmão é uma pessoa para quem os bens materiais não têm valor. É difícil para algumas pessoas entenderem, acham que não há ninguém que seja assim, mas ele é."

Em 1974, é convidado para aderir ao PCP. E, cinco anos depois, já fazia parte do Comité Central (CC), o órgão máximo entre congressos. Aos 35 anos, integrava os órgãos de direcção, Comissão Política e Secretariado do CC. Para o homem que decidiu "actuar plenamente de acordo com os ideais", ser funcionário do partido a tempo inteiro era a consequência "natural" de um compromisso que o agora candidato assumia.

"Até o ferro forjar bem"

Fidelidade, organização e persistência. Qualidades inatas que todos lhe apontam, quando questionados sobre as razões para justificar o percurso no partido. E que já estavam em cima da mesa nas reuniões da célula da Carris em 1978. O sindicalista Arménio Carlos recorda reuniões que terminavam às duas da madrugada, sem pausas para jantar, porque, com o "Xico", era "até o ferro forjar bem": "Ele aguentava e fazia os outros aguentar."

O homem há 20 anos responsável pela organização e quadros do partido nem sempre tomou decisões fáceis de digerir por alguns dos seus camaradas. Odete Santos não gostou de saber que Francisco Lopes lhe hipotecava o lugar de deputada sem lhe dar conhecimento prévio: "Ele, naquela altura - há 15 anos -, queria que eu saísse da Assembleia da República. Eu tinha passado para segundo lugar na lista por Setúbal, sem pedir nada a ninguém, não compreendi e isso caiu-me muito mal." Resolveu o diferendo com "uns coices à Odete Santos" e hoje admira o dirigente, pelo qual não nutriu simpatia no início: "Para ser totalmente franca, não gostei dele." O episódio ficou ultrapassado e, actualmente, Odete reconhece que a capacidade de trabalho do comunista é a sua "principal qualidade".

É conhecido por ser o primeiro dirigente a entrar e o último a sair da sede. O irmão acha que "ele trabalha de mais": "Porque, se eu ligo para casa dele às dez da noite, ele ainda não chegou, atende-me a minha sobrinha, eu pergunto pela família e ela responde-me "parte da família"."

Foram estas características que o fizeram chegar aqui. Figura de peso na direcção comunista há muito, candidato à Presidência agora. Afinal, encaixa nos requisitos do partido como um tijolo na parede. Mas que surge como uma surpresa aos olhos de quem não sabe como funciona o aparelho: "No Partido Comunista, não há propriamente carreiras individuais", reforça Pacheco Pereira, historiador, autor de uma biografia sobre Álvaro Cunhal.

A escolha de Lopes para candidato a Belém percebe-se melhor quando se olha para a forma como o partido sempre enfrentou as suas "crises": "Vão-se os anéis, ficam os dedos. É um partido que olha para dentro." Mesmo em tempo de eleições, a primazia permanece no "reforço da identidade interna". É assim que surge um candidato que fala a mesma língua e que tem "a mesma aproximação ao mundo" de um militante de base comunista. Como se, nos últimos anos, o partido "tivesse perdido a capa de cima - perdeu os intelectuais, como Cunhal ou Carvalhas - e só tivessem ficado os militantes", como Lopes ou Jerónimo de Sousa, explica Pacheco.

A saída e a expulsão de intelectuais que foram sangrando o PCP ao longo dos anos também afectaram negativamente a imagem do agora candidato. Foi catalogado por alguns como um dos que levaram a cabo a tarefa de limpeza interna. "Ele é um tipo do aparelho, segue ipsis verbis aquela cartilha. Com eles, [ortodoxos] até se podia ter dúvidas [ideológicas], mas eram respondidas logo ali. E tinham de ficar resolvidas logo ali." O retrato é feito por um ex-militante comunista que mantém um cargo político. Preferiu não se identificar, para evitar problemas. Os contactos com o candidato presidencial, então nas suas funções de organização do partido, mostraram-lhe alguém sem particular capacidade "nem de liderança, nem de intelecto", afirma, antes de lhe reconhecer "convicção e sentido de militância". Mesmo assim, continua sem se entusiasmar com a candidatura à Presidência de Francisco Lopes: "Ele está a cumprir esta tarefa partidária de levar a cruz ao calvário."

Ausência de carisma

Apesar do seu peso dentro do partido, Francisco Lopes só chegou ao Parlamento em 2005. E a verdade é que esteve sempre à margem do espectáculo parlamentar. A falta de carisma que alguns lhe apontam pode ser uma das explicações.

A invisibilidade externa das funções que desempenhou no PCP também não terá contribuído para ser um político conhecido. Se Pacheco Pereira o acha "baço e com intervenções parlamentares muito feitas naquela língua de pau", Odete Santos o considera "sério" e o histórico dirigente comunista Domingos Abrantes lhe reconhece um "ar sisudo" num primeiro contacto, todos admitem que a campanha presidencial pode vir a mudar essa percepção. "Não tem carisma, mas poderá vir a ter. Estou à espera que ele se liberte, tem que se libertar", reconhece Odete Santos.

A realidade é que a mediatização dos quadros dirigentes do PCP não é uma prioridade. Acima de tudo, está o "dever". Tanto quando se fala do lugar de deputado, como quando se decide um nome para uma candidatura a Belém. "Gostar de ser deputado é suspeito, ele está lá por dever. Aceita esta missão pelo sentido do dever", explica Domingos Abrantes. Afinal, para os comunistas, o Parlamento é uma expressão da democracia burguesa. "Esse confronto [parlamentar] tem sentido na medida em que me sinto com o meu partido a representar os interesses dos trabalhadores. É isso. É uma função de representação. Só isso dá sentido à intervenção que se deve ter", diz o candidato.

Há quem faça a leitura de que Lopes está a ser preparado para outros voos. Carlos Carvalhas e Jerónimo de Sousa foram candidatos antes de chegarem ao cargo de secretário-geral. A escolha, este ano, do dirigente para concorrer a Belém seria um sinal sobre a sucessão do actual líder. Odete Santos reconhece que o seu camarada "tem qualidades para ser futuro secretário-geral". Mas não dá isso como assente. "Se quisermos, no partido, falar hoje de meia dúzia de pessoas com relevo, não há dúvida que Francisco Lopes é uma delas. Está na short-list dos possíveis secretários-gerais", confirma Pacheco Pereira. Mas, acrescenta, também "há muitos quadros promissores que acabaram de um dia para o outro". O histórico dirigente Domingos Abrantes, que se escusa a fazer "extrapolações absurdas", tem, no entanto, uma certeza: "Nem todos nascem e morrem comunistas", mas não parece ser esse o caso do homem que quer chegar a Belém.

O candidato à Presidência da República que, goste-se ou não, conhece sem dúvida "o que é que a casa gasta", é um dos dedos que "ficam" quando os "anéis" se vão, como diz Pacheco Pereira. É o dedo que organiza e decide. Francisco Lopes é o dedo indicador. Até onde irá o funcionário idealista que desde cedo se sentou inquieto à janela e agiu de acordo?

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