Subitamente, um poeta

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Revelação da poesia portuguesa, Miguel-Manso sobe ao palco com a Cão Solteiro num espectáculo em volta dos seus poemas. Talvez herméticos, ou talvez pop

Miguel-Manso não gosta de teatro. "Não me interessa", diz, descontraído, embora este mês esteja em cena, e fisicamente em cena, num espectáculo teatral. Mas talvez não seja teatro em sentido canónico; afinal, a companhia lisboeta Cão Solteiro tem trabalhado habitualmente a partir da literatura, e em parceria com os autores que encena.

Miguel-Manso já tinha colaborado com a Cão Solteiro, e revê-se na estética do grupo. Aceitou por isso o desafio para um espectáculo à volta da sua poesia. A encomenda, diga-se, foi um pouco submetida às suas prioridades; ele estava a escrever os poemas de "Santo Subito", e apresentou como projecto justamente o livro "Santo Subito", acrescido apenas de mais dois poemas. Não é pois exactamente um texto de teatro, mas qualquer coisa como um texto em palco.

Manso (o hífen é nome artístico) até já fez teatro, no Instituto Superior Técnico, e, embora tímido, não mostra especial apreensão quanto a essa actividade de actor, ou algo parecido com actor. O espectáculo, conta, foi essencialmente construído à mesa, entre textos, e não há exactamente uma narrativa. Manso descreve "Santo Subito" como uma espécie de espectáculo para leitores, mais do que para espectadores. Interessou-lhe a ideia de "autenticidade", e não propriamente a construção ficcional.

Conta também que reeditou o livro, já esgotado, de propósito para o espectáculo. Incluindo, diz com algum gozo, "18 exemplares que vão ser estragados em palco".

De Almeirim a Gent

Miguel-Manso nasceu em Santarém, em 1979, e viveu em Almeirim.

Diz que sempre foi fraco estudante, e queria sobretudo sair daquela zona. Queria ir para Lisboa. Ainda se inscreveu num curso à distância, candidatou-se a Belas-Artes, e acabou por frequentar um semestre de Design. A ida para Lisboa concretizou-se aos 20 anos: fez o curso básico de desenho no Ar.Co, mas também não se interessou mais, embora ainda desenhe. Para ganhar a vida, estudou ciências documentais, e com isso arranjou um emprego na galeria ZBD, um centro da "movida" artística lisboeta. Também passou pela Casa d'Os Dias da Água, à Estefânia, e nos intervalos de guiar os visitantes escrevia os seus textos.

Na adolescência, mesmo depois, experimentou a prosa. Textos entre a ficção e a crónica, alguns publicados em blogues. Interessava-lhe a natureza híbrida desses exercícios, mas cansou-se. Descobriu na biblioteca os surrealistas portugueses, Cesariny e O'Neill, e fazia "cadáveres esquisitos" com os amigos. Confessa que a poesia também lhe interessava pelo mais nobre dos motivos: impressionar as raparigas.

Depois, já em Lisboa, conheceu João Miguel Fernandes Jorge em casa de um amigo, aliás filho de Fernando Assis Pacheco. Depois foi lê-lo. Conta que ficou fascinando com a "energia" daqueles poemas, com a sabotagem das expectativas do que deve ser um poema. Uma outra forma de heterodoxia, depois da surrealista. E encontrou um género de escrita onde cabiam todas as experiências e todas as referências, mesmo obscuras, o tal registo híbrido que já tentara na prosa.

Vários poemas de Miguel-Manso são marcados por alusões muito específicas, e nem sempre identificáveis de imediato. Ele gosta disso, não acha que isso seja um entrave à leitura, pelo contrário, cultiva até um discurso marcado por um certo anti-intelectualismo ("como defesa", explica). E o que faz quando encontra nomes desconhecidos em poemas de outros? Vai ao Google? Diz que não, excepto para fazer conversa depois. Não é isso o mais importante num poema.

O mais importante num poema talvez seja o registo da experiência, que não necessariamente do "quotidiano". Entenda-se aqui "experiência" em sentido lato. "Pode ser uma história que alguém me contou". Não se espere por isso demasiado confessionalismo, os poemas mantêm um certo estatuto ficcional. Manso escreveu várias vezes sobre o Oriente, por exemplo, e no entanto nunca esteve no Oriente. "Mas gostava".

As viagens estão muito presentes nos seus textos, e tanto podem ser cidades longínquas como aldeias portuguesas, sobre as quais escreveu aliás belos poemas. Miguel-Manso terminou o seu primeiro livro em Paris, onde viveu durante um mês. E na Bélgica, numa loja de velharias em Gent ("não sei como se pronuncia" é um comentário típico), comprou nove carimbos que queria usar em trabalhos visuais mas que viriam a ser literalmente a chancela das suas colectâneas de poemas.

Os Cadernos de Miguel-Manso

Em 2007, de facto, Miguel-Manso decidiu escrever a sério. Já saíram três dos nove "carimbos de Gent", e os restantes já estão planeados, numa sequência que acaba por ter uma dimensão narrativa. São, sugerimos, os "Cadernos de Miguel-Manso", e ele diz que leu Gonçalo M. Tavares, embora pouco, e que se interessa pela sua escrita. E certamente pela sua premeditação e empenho.

Na pequena dimensão das coisas da poesia "Contra a Manhã Burra" (2008), "Quando Escreve Descalça-se" (2008) e "Santo Subito" (2010) foram sucessos de livraria, logo reeditados, e a crítica foi unânime no elogio. Miguel-Manso ficou surpreendido com a recepção? "Até pensei que fosse normal", diz, com aquela ironia que às vezes parece genuína ingenuidade.

Mas não, não é normal. Há anos que nenhum poeta mais jovem que Manuel de Freitas (nascido em 1972) era tão falado nos meios da poesia. E com a particularidade de ser aceite acima das patéticas "guerras da poesia" de há uns tempos atrás, que Manso não acompanhou na altura e pelas quais não mostra nenhum interesse. Insistimos: qual foi a importância do "sucesso"? Resposta no mesmo tom de antes: "Legitimou-me face aos meus pais". Afinal, o filho estava a fazer alguma coisa na vida, e era bom nisso.

Os três livros de poemas de Miguel-Manso saíram em edição de autor, embora dois tenham sido republicados em pequenas chancelas (Trama e Mariposa Azual). A auto-edição é propositada. Evita a mísera percentagem habitual de direitos de autor, e permite ao autor controlar o tempo e o processo de publicação. Ele quer ter "mais leitores do que a tiragem", o que tem acontecido. E afirma que vai editar ele mesmo todos os próximos livros, sem prejuízo das prováveis reedições.

Miguel-Manso nunca tem um discurso arrogante, mas diz-se "confiante" em termos literários. "É mesmo aquilo em que sou mais confiante". Por causa da recepção crítica? Bem, isso ajudou, claro, mas há sobretudo uma determinação pessoal. "Estou mesmo apostado nisto", e tão apostado está que já tem seis livros pensados, seis "carimbos de Gent", e não escreve nada que esteja de fora desse projecto. Claro que sabe que já criou uma expectativa, e tem momentos de auto-crítica (diz que "Santo

Subito" é um livro "megalómano", não se percebe bem porquê). Mas confessa que aquilo que escrevem sobre ele serve essencialmente para lhe dar uma noção mais "teórica" sobre o seu trabalho, não é isso que determina nada.

Podemos por exemplo falar da sua poesia arriscar aproximações parciais, como "hermetismo" ou "imagismo", mas Miguel-Manso contrapõe "Acho que sou um poeta pop". Mas essa designação sugere uma ligeireza comercial que não se adequa nada aos seus poemas minuciosos. Porquê pop? Miguel-Manso, meio encabulado, diz apenas: "Um amigo disse-me que eu era um poeta pop, e eu gostei". E fica sorridente com a resposta.

"Santo Subito", de Cão Solteiro e Miguel-Manso, Rua Poço dos Negros, 120, Lisboa, de 3 a 23 de Dezembro, às 22h

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