A revolta do nerd

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"Scott Pilgrim Contra o Mundo" é a adaptação ao cinema da BD do mesmo nome, uma homenagem ao universo "nerd" que luta pelo reconhecimento dos seus sentimentos e um retrato heróico, em filme, de uma certa juventude que ganha o seu espaço no cinema

Scott Pilgrim veio ao mundo como personagem de uma BD criada por um jovem canadiano: Bryan Lee O'Malley. No seu site pessoal, O'Malley descreve a banda desenhada como a única coisa que continuou a fazer "enquanto desistia de tudo o resto (universidade, empregos, amigos, ser um 'nerd', deixar de ser um 'nerd', etc.)". O universo de Scott será um espelho do mundo de Bryan, um rapaz sem lugar óbvio no mundo, cujas inseguranças e dificuldades de compromisso com a vida fazem-no refugiar-se no seu gosto individual: o desenho, a música e os jogos de vídeo. Assim, enquanto O'Malley desistia das suas várias funções sociais, decidiu adaptar o seu mundo à vida do seu alter-ego Scott: um jovem com dificuldades em manter relações amorosas (por não assumi-las ou ter sido deixado nelas), concentrado nas suas obscuras referências e no caminho trágico da sua banda de música.

Mas quando Scott conhece Ramona, a rapariga dos seus sonhos, O'Malley oferece-lhe aquilo que não dispunha na sua vida real: um conjunto de super-poderes que permite à personagem combater todos os fantasmas sociais que alimentam as suas inseguranças e que tentam desfazer a ilusão da sua paixão feminina. Esses fantasmas são vilões ex-namorados: um rapaz exótico indiano; uma estrela de cinema de acção; um "vegan" e talentoso baixista de uma banda de sucesso; uma experiência lésbica; um par de gémeos asiáticos; e um empresário de sucesso. Ou seja, tudo aquilo que Scott Pilgrim não é - um conjunto de estereótipos sociais que sempre derrotaram o "nerd" inocente e deslocado e que se colocam agora no caminho da sua felicidade.

Playlist

Se a BD sustenta a sua acção por uma estética inspirada na manifestação gráfica dos "manga", reflectida no filme pela presença de batalhas em formato "kung fu" (Jackie Chan foi um dos consultores de "Scott Pilgrim Contra o Mundo"), a adaptação ao cinema exalta outras referências do universo "nerd". Assim, os vários episódios de luta (com toques da "acção cómica" de Edgar Wright, realizador também de "Zombie Party - Uma Noite... de Morte" e "Hot Fuzz - Esquadrão de Província") colocam-se num universo que refere os jogos de vídeo, o mundo paralelo das personificações "nerd" de caminhos mágicos, vidas múltiplas e poderes especiais - tudo o que se anseia no dia-a-dia opressivo de jovens cujas t-shirts marcam um "zero" (como se lê na de Scott Pilgrim, popularizada pelos Smashing Pumpkins).

Mas aqui surge a primeira de muitas referências musicais, um dos "salva-vidas" reais da juventude "alternativa". Scott Pilgrim concentra a sua frustração no som supersónico do seu baixo, um detalhe valorizado por uma adaptação cinematográfica que se rodeou de várias autoridades musicais que alimentam as "playlists" construídas nas caves dos ouvintes sozinhos. Assim, Nigel Godrich, produtor e nome essencial da música "indie", é o autor da banda sonora original, dando também espaço a Beck, músico "alien", para compor momentos musicais, assim como a Frank Black dos Pixies ou aos mais recentes Broken Social Scene. Os trocadilhos nos diálogos e nos nomes das personagens (Stephen Stills é o nome do cantor da banda de Scott e Young Neil o do seu "roadie", indo Ramona buscar inspiração a uma canção de Dylan e aos próprios Ramones), tal como as músicas que acompanham o filme são detalhes de uma "playlist" infinita que alimenta uma juventude carente.

Mas se o filme aproveita as referências do mundo "nerd" para a sua lógica narrativa, não o faz apenas a nível visual. Por trás dos efeitos, esconde-se a defesa do reconhecimento social de alguém que enfrenta os estranhos corpos da imaginação popular que pretendem aniquilar a sua existência. Assim, Scott Pilgrim tenta derrotá-los não apenas por uma crença no seu universo, como pela desconstrução da validade sociológica dos seus inimigos - os que não o reconhecem enquanto pessoa e que se mostram tão artificiais quanto o vilão de um jogo de vídeo.

A vingança dos marginais

"Scott Pilgrim Contra o Mundo" acaba por surgir, neste contexto, como o ponto culminante de um conjunto de filmes do cinema norte-americano que tem dado uma oportunidade de existência aos "nerds". Para o papel de Scott, foi escolhido o jovem canadiano Michael Cera (que viveu em Toronto, cidade retratada no filme). Comediante que carrega a sua "persona nerd" por todos os filmes onde passa, encontra em "Scott Pilgrim" uma oportunidade que também não lhe é concedida na maior parte dos seus projectos: a de se projectar numa comédia física e exceder o seu habitual papel da categorização social de rapaz estranho.

Se bem que a projecção de vida dos "nerds" no cinema encontra a sua origem na década de 80, caricaturizada em filmes como "A Revolta dos Marados" (1984) e mais problematizada na obra do influente John Hughes, são actores como Cera que reduzem o seu universo a uma aparência mais naturalista, trazendo elementos da sua própria vida para a construção da comédia e validando, desta forma, a sua biografia "nerd" como narrativa cinematográfica. Consciente da sua imagem, Cera tem trabalhado o seu universo raro e associal em outras obras: em "Juventude em Revolta" (2009), cria o alter-ego francês François Dillinger para se comportar de forma perversa, ilegal e irresistivelmente sedutora para conquistar a rapariga dos seus sonhos; em "Super Baldas" (2007), comédia produzida por Judd Apatow e superior a qualquer pretensão cómica juvenil de outros "filmes de género", Cera é um dos três jovens que pretendem viver a noite das suas vidas antes de partirem para a universidade, ultrapassando as várias humilhações impostas pela sua timidez, condição social ou jovem idade.

O próprio realizador de "Super Baldas" (2007), Greg Mottola, inspirou-se na sua juventude deslocada para criar "Adventureland" (2009), a história de um jovem que procura a sua independência pessoal, financeira e sexual num caminho de auto-descoberta que teima em restringi-lo a uma categorização social distante da convivência popular (o intérprete é Jesse Eisenberg, o Mark Zuckerberg de "A Rede Social", supremo "nerd" que desconstruiu o esquema de popularidade social para torná-lo inteiramente seu).

Mas um dos retratos mais fiéis e sensíveis do desconforto de crescer num mundo tímido de referências ultrapassadas, como resulta a adolescência destes jovens que não cabem em imagens populares, terá sido na série televisiva "A Nova Geração", escrita por Paul Feig e também produzida por Apatow (SIC Radical). Retratando a vida, em 1980, de um liceu americano e das famílias dos seus atípicos protagonistas, a série, exibida em 1999 e cancelada pouco antes do final, tornou-se numa das maiores peças de culto de espectadores ajustados e desajustados. O retrato é tocante não apenas pela presença, vista de hoje, de alguns dos nomes mais interessantes da comédia norte-americana (entre os já profissionais e os verdadeiros "geeks"), como pela honestidade com que um mundo deslocado se valida perante a matéria humana mais sensível das relações (ou falta delas). Um mundo que hoje, mais do que pela comédia, ganha respeito pela escrita e pelo fulgor da oportunidade que as imagens lhe concederam. E que permite a Scott Pilgrim, entre outros, ir ao encontro do seu desejo e respeito.

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