Troca de seringas causou morte a criança no IPO e a jovem nos Capuchos

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As duas vítimas estavam a fazer terapêutica de manutenção Fernando Veludo/nFactos (arquivo)

Os casos parecem decalcados: em Dezembro de 2005, Francisco Novaes, de 22 anos, foi vítima de uma troca de seringas, durante um ciclo de quimioterapia no Hospital de Santo António dos Capuchos, em Lisboa; dois anos depois, aconteceu precisamente o mesmo a José Maria Nora, um rapaz de oito anos, no dia em que se submetia ao penúltimo tratamento a uma leucemia no IPO de Lisboa. Estavam ambos quase livres da doença, já na fase final da quimioterapia, e acabaram por morrer devido ao erro.

O médico e a enfermeira que injectaram a substância que se revelou fatal para Francisco Novaes foram condenados este ano a dois anos de prisão com pena suspensa, por homicídio por negligência. E a médica e as duas enfermeiras acusadas da troca de fármacos que provocou a morte de José Nora começam a ser julgadas na próxima sexta-feira, no 4.º Juízo Criminal de Lisboa. São acusadas exactamente do mesmo crime, homicídio por negligência, punido com pena de prisão até três anos.

Como é que nenhum dos profissionais de saúde envolvidos se apercebeu da troca de substâncias, uma das quais é altamente tóxica e provoca lesões neurológicas irreversíveis se injectada na coluna? A sentença do primeiro caso dá uma resposta: "Nem a sra. enfermeira F.R., nem o sr. dr. A.C. conferiram as etiquetas das seringas em causa". Foi exactamente o que aconteceu com a criança assistida no IPO. Aqui, a seringa que se revelou letal passou por duas enfermeiras e a médica que a injectou: nenhuma delas olhou, sequer, para os rótulos.

José Nora teve o azar suplementar de ter sido tratado numa véspera de Carnaval, um dia com "uma anormal concentração de doentes e falta de profissionais", descreve o despacho de acusação. Depois de lhe ter sido diagnosticada uma leucemia linfoblástica em 2006, estava já em remissão (ausência de sintomas), a fazer terapêutica de manutenção. O tratamento incluía a injecção de três tipos de substâncias, duas a administrar por via endovenosa e outra por via intratecal (na coluna). "Naquele dia, faltavam três elementos do pessoal, incluindo o enfermeiro coordenador do Hospital de Dia", pelo que coube a uma enfermeira - que habitualmente trabalha no Internamento de Pediatria - preparar os fármacos. Foi o que fez, colocando-os em tabuleiros distintos, devidamente identificados, com cores diferentes (preto e vermelho). Mas no mesmo tabuleiro iam duas substâncias a injectar por vias distintas. Esta era a prática habitual naquele serviço.

Pedidos 433 mil euros

Os problemas começaram quando outra enfermeira, responsável por José Nora, acondicionou duas das seringas num tabuleiro, quando preparava a criança para a punção lombar. Uma delas continha Vincristina, a substância que devia ser administrada por via endovenosa e, em caso algum, injectada na coluna, como veio a acontecer. "A Vincristina, quando aplicada por via intratecal, produz lesões neurológicas irreversíveis que, quase sempre, levam à morte", destaca a acusação.

A enfermeira S. M. não conferiu as etiquetas constantes das seringas e uma colega chamada a colaborar no tratamento - era necessário imobilizar José Nora - passou à médica a seringa errada, também sem ler o rótulo. Só quando a médica já tinha injectado metade da substância é que uma das enfermeiras se apercebeu do erro, mas já era tarde de mais. A médica, que também não verificara a etiqueta, ainda tentou aspirar com a seringa o máximo possível de líquido e fez lavagens com soro fisiológico. José entrou em coma e morreu a 10 de Março.

A família pede uma indemnização de 433 mil euros. "Isto não é uma caça às bruxas. É preciso explicar que a classe médica não está acima da lei", defende o advogado da família, António Pinto Pereira, que não acredita noutro resultado que não a condenação.

Condenados foram já a enfermeira F.R. e o médico A.C., a quem a juíza do Tribunal Criminal de Lisboa aplicou dois anos de prisão com pena suspensa. Os arguidos recorreram para o Tribunal da Relação, que ainda está a analisar o caso. A história de Francisco Novaes é em quase tudo semelhante à de José Nora. Também ele estava em remissão de uma leucemia e a fazer terapêutica de manutenção. A 7 de Dezembro de 2005, Francisco entrou no Hospital de Dia dos Capuchos para mais um ciclo de quimioterapia. Ficou provado que nesse dia o hospital "estava lotado". Sem ler os rótulos das seringas, a enfermeira passou Vincristina ao médico, que, igualmente sem verificar a etiqueta, a injectou na coluna do jovem.

O exemplo serviu para mudar as rotinas no Hospital de Dia dos Capuchos, levando inclusivamente à criação de um Manual de Boas Práticas. "Manual que estabelece aquilo que o bom senso já deveria ter imposto antes", acentua a juíza. Até então, a prática era a de colocar num só saco e num só tabuleiro os fármacos a aplicar por via intratecal e por via endovenosa. Desde então, o cuidado dos profissionais de saúde que lidam com este tipo de substâncias foi redobrado. Depois deste caso, "foram reforçadas as medidas correctivas essenciais, necessariamente ainda mais rigorosas que as já existentes, para evitar a eventualidade de um novo erro", assegura o Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Lisboa Central, a que pertence a unidade dos Capuchos. Contactado pelo PÚBLICO, o IPO de Lisboa não enviou qualquer esclarecimento.

A Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) rejeita responsabilidades, referindo que, em caso de troca de substâncias, "após apuramento de responsabilidades, deverão ser notificadas as ordens profissionais competentes (Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos, Ordem dos Enfermeiros e a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde)".

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