Tem saudades de tudo. Dos ensaios, das noites da estreia, da representação, das palmas, das críticas. Sobretudo das que magoavam e que a fizeram crescer. Mariana Rey Colaço Robles Monteiro, actriz, filha do mais famoso casal do teatro português do século XX, numa entrevista que assinala os seus 80 anos de vida
Os achaques da idade levam-na a cortar com as persianas a adorada luz de Lisboa. Na semipenumbra do salão, sobressai uma fotografia da mãe. Outra do marido, falecido quando ela tinha 35 anos. Sobre uma mesinha, no recanto onde recebe o PÚBLICO, no último andar de um alto prédio da Avenida Infante Santo, em
Lisboa, um pequeno livro encadernado a verde com uma placa evocativa: Debute de Marianinha 20 de Abril de 1946 lembrança de Sara e Salomão.
PÚBLICO - Esta entrevista era para ser publicada sábado passado. Mas a sua agenda carregadíssüna não permitiu o encontro. Apesar de ter abandonado o teatro, ainda mantém actividades correlacionadas?
MARIANA REY MONTEIRO - Não. Estava é nos preparativos da quadra. Tive cá em casa a família mais chegada toda: com três filhos, dez netos e quatro bisnetos e meio (vem a caminho mais um), ao todo somos já 24.
Cessou toda a actividade profissional?
Sim. Infelizmente sofro muito de reumático e tenho crises horríveis. Tem sorte em apanharme agora numa fase relativamente calma nesse aspecto. Saio muito pouco.
Nasceu no palco. Mas a sua estreia só aconteceu aos 24 anos. Antes só tinha pisado o palco aos 12 anos para uma participação num coro, na peça "A Castro", de António Ferreira, no Mosteiro de Alcobaça, não foi?
Foi e não foi. Nasci num ambiente em que não se falava de outra coisa senão de teatro e também de música. O meu avô Alexandre Rey Colaço era compositor. Por vezes também se falava em pintura, porque tinha uma tia muito talentosa, Alice Rey Colaço. A mistura dos sangues dos meus avós deu a vários membros da família sensibilidade artística: o meu avô, que era filho de um francês e de uma espanhola, nasceu em Tânger, estudou música em Madrid, casou com uma filha de uma francesa e de um alemão e foi viver para Berlim! Muitas vezes ponho-me a ver até onde vai a minha memória desses tempos... Mas ainda bem que fala nesse espectáculo ao ar livre em Alcobaça - as pessoas esquecem-se muito depressa das coisas importantes que houve, e os meus pais [Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, donos da empresa que explorou, a partir de 1929, o Teatro Nacional D. Maria II] fizeram coisas muito importantes no campo teatral. Essa foi uma delas. A minha mãe achou que era uma maneira útil para a minha educação fazer parte daquele coro. Quando houve a repetição, tinha eu 18 anos, já não entrei porque os meus pais tinham pavor que eu fosse para o teatro.
Porquê, se a vida deles era essa?
Porque viveram sempre com muitas dificuldades financeiras.
Queriam que a senhora fosse o quê? Queriam que eu fosse casar com um rei ou com um príncipe, não sei. Adoravam-me. E sofriam muito com a profissão. Tiveram muitas dificuldades em todos os aspectos - as "tournées" pelo país inteiro em instalações precárias e primárias; despesas com o elenco e com a montagem das peças que incluíam Shakespeare, Molière, Schüler, os modernos americanos, a quase totalidade dos modernos portugueses - tudo isto com um subsídio anual de dois mil contos. Aos 24 anos estreia-se, então. ... Até chegou a ser secretária na Emissora Nacional (EN)... ... Eles próprios a dirigiram...
Mas essa estreia foi especial: Júlio Dantas, amigo deles, adaptou a "Antígona", de Sófocles, para a senhora. Não foi um peso excessivo, esse nome que transportava consigo? Para o bem e para o mal. Quando me estreei tive uma grande luta comigo mesma sobre o nome que havia de escolher. Não queria magoar nem a minha mãe nem o meu pai. Daí Rey Monteiro. Agora a minha neta Mónica, quando se estreou há quatro ou cinco anos, também não quis que o nome Rey Colaço lhe fosse abrir as portas ou se tomasse um "handicap". E por isso ficou com o apelido do pai, Gamei. Contaram-me, não sei se é lenda, que lhe chamavam, com boa intenção, claro, a "filha da mãe". Esse peso familiar acompanhou-a sempre no palco? Abandonou os palcos nos anos 80 e a televisão há cinco anos. Lembra-se da última peça que viu? Já foi há uns três ou quatro anos. Quer dizer que voltar ao Nacional já não lhe custa? Qual foi a peça de que mais gostou na vida? Que papel tem pena de não ter feito? O Teatro Nacional tinha um estilo. Até se dizia "representar à Nacional'', com sentido crítico. O Teatro Independente pôs isso em causa, nos anos 70. Como é que olha para o teatro que se faz hoje? Fez as mesmas tentativas que os seus pais quando a sua neta quis seguir a carreira do teatro? Não, não. Também, talvez. Talvez a sociedade esteja mais preparada para qualquer manifestação vocacional. É uma vida terrivelmente difícil. Quando vê alguém representar, o que é que a leva dizer: "Está ali um grande actor, uma grande actriz"? Está arrependida de ter seguido esta profissão? A saudade é do ensaio, é da noite da estreia, é da representação, é das críticas, é das palmas? O pavor da crítica acompanhava-a? E as palmas, fazem parte de 'quê? É a vaidade? O mundo dos actores e das actrizes é também um mundo de invejas, diz-se. Esse aspecto foi muito forte ao longo da sua carreira? É-se actor ou actriz no palco e na vida?
Eu gostava era de representar. Houve várias: "As Divinas Palavras", de Valle-Inclán, uma das que mais gostei de representar; adorei fazer "Diálogos das Carmelitas", do [Georges] Bemanos; adorei fazer também "Um Eléctrico Chamado Desejo", de Tennessee Williams, que não me estava nada na caixa, como se costuma dizer, mas que foi dirigida pela Henriette Morineau, uma francesa brasileira (tive um prémio); e "Equilíbrio Instável", do [Edward] Albee, no Avenida.
Quem são para a senhora os grandes actores e actrizes de Portugal? Há muitos. Houve um grande amigo meu, o João Vülaret, que dizia que estar-se na Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro era um conservatório. Tinha uma enorme gama de possibilidades.
A crítica a mim magoou-me sempre mas fez-me muito bem. As más críticas só me fizeram bem. Porque puxaram por mim. Parto do princípio de que um crítico é um amante de teatro.
A minha mãe morreu aqui em casa e uma das coisas que me disse foi: "Vai-me dar este recado assim assim ao telefone." Era um recado difícil, era para não magoar alguém. "Ai mãe, custame tanto ir fazer isso!" A frase que ela me disse foi esta: "Tu és actriz suficiente para o poderes fazer." Eu disse-lhe: "Mãe, por que é que não havemos de ser todos, sempre, pão-pão, queijo-queijo?" Ela olhou para mim e respondeu: "Com a nossa educação é impossível." É isso.
Por vezes sinto que não quero magoar o próximo; outras isso não me deixa ser tão menos actriz como eu gostaria. Alguma vez se sentiu um pedaço das personagens que representou? De um dia para o outro, o reconhecimento popular chegou. Por via da televisão, que lhe ofereceu o que décadas a representar Shakespeare e Molière não tinham conseguido. Já no fim da vida de sua mãe, contracena com ela na série "Gente Fina É Outra Coisa". Como foi essa experiência televisiva? Há bons actores jovens na televisão? A maldição de Macbeth A senhora não era supersticiosa? Perfil: A paixão do teatro Estreia-se aos 24 anos no palco dos pais (Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, concessionários do Teatro Nacional D. Maria n, em Lisboa), com uma adaptação da "Anügona", de Sofocles, preparada por Júlio Dantas. Maria Barroso é a sua "madrinha de cena". Participou no fume "um Dia de Vida" (1962), de Augusto Fraga, mas recusou um convite de Hollywood, por "medo" e saudades dos pais e da luz de Lisboa. A participação em sete novelas deu-lhe a popularidade que uma vida a representar o grande repertório da dramaturgia portuguesa' e mundial nunca lhe proporcionara. Retirada dos palcos e do ecrã, não esconde o entusiasmo com que assiste aos primeiros passos da neta, Mónica Gamei, na profissão."A vida do teatro tem o dom de nos agarrar com paixão", diz aos 80 anos, feitos em 28 de Dezembro passado, Mariana Rey Colaço Robles Monteiro.
A "injustiça" da televisão
... Desse não têm memória. Pode-se ser actor ou actriz só no estúdio? Sempre que se traduz um sentimento (uma dor, uma alegria, amargura), quer com a técnica teatral quer com a técnica televisiva ou cinematográfica, e se consegue chegar a um público, eu acho que é uma faceta da representação.