O calcanhar de Massimo Furlan

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Laure Ceillier

É o único dia de 1987 que interessa, o dia em que Madjer marcou um golo que tinha de ser inventado. Massimo Furlan volta a marcar esse golo hoje no Trama

Esta é mais uma assombração que vive na cabeça de Massimo Furlan, uma cabeça cheia de fantasmas - cheia de heróis, o que vai dar ao mesmo - que têm transformado a carreira deste performer suíço, filho de pais italianos, numa sucessão de exorcismos. "É uma questão de memória. Tudo tem a ver com a memória e com a minha própria vida, que foi totalmente banal", disse ao Ípsilon, decidido a fazer uma viagem ao centro de Massimo Furlan, o homem que esta noite vai ser Madjer, o número 8, sozinho no Estádio do Dragão.

Se lá no fundo ele e os primos ainda estão a montar um circo na sala à frente dos avós, Massimo Furlan inventa "Palo Alto" e dá nova vida a acrobatas, malabaristas, palhaços e ao incrível domador de leões. Se ele e a irmã ainda estão sentados no sofá naquela noite de Abril à espera do fascinante Festival Eurovisão da Canção, Massimo Furlan penteia a cabeleira loira, veste a camisa de cetim e percorre os figurinos de "1973". Se continua marcado pela descolagem da primeira viagem de avião do pai, Massimo Furlan desafia a gravidade e tenta levantar voo em "International Airport". Se o pequeno Massimo ainda corre de pijama com um cachecol atado ao pescoço a fazer de capa, o grande Massimo dá a volta ao mundo em dois segundos em "(Love Story) Superman".

"Gostava de imaginar que era o super-homem. Ainda na semana passada estive no topo de um edifício em Toulouse e controlei toda a cidade", conta Massimo Furlan, que hoje não tem nada a ver. Hoje é dia 27 de Maio de 1987. Estamos no Porto, mas estamos em Viena. Estamos no Estádio do Dragão, mas os "dragões" estão no Prater, a ganhar uma Taça dos Campeões Europeus com um golo de calcanhar de Madjer. "Jogava sozinho no meu quarto com uma pequena bola e imaginava-me no meio de um estádio, onde era o herói. Ouvia o relato em directo e quando perdia o sinal no rádio inventava. Nunca joguei numa equipa real de futebol, mas sempre imaginei ser um campeão. Sozinho fui campeão do mundo, fui vencedor da Liga dos Campeões, até já fui melhor marcador de várias competições".

Logo à noite, Massimo Furlan será 70 quilos de Madjer em "Furlan/número 8", e reproduzirá todos os movimentos do jogador argelino. Estará sozinho no relvado. Sem adversários, sem colegas de equipa, sem bola. O FC Porto-Bayern está marcado para as 21h. O relato, de Ricardo Couto, será transmitido em directo em 102.1 FM (é obrigatório levar um rádio portátil). E tudo isto é uma manobra produzida pelo Trama - Festival de Artes Performativas, cuja quinta edição começou ontem no Porto.

"Recordo figuras heróicas, personagens que tocaram toda a gente. Uso a parte de ficção da minha memória. Porque é que me lembro de tanta coisa e não de outra parte da minha vida? [silêncio] Por isso é que reinvento as minhas memórias. Existe uma parte intuitiva da memória íntima e existe a memória colectiva, que neste caso é a do FC Porto. Eu exploro esse cruzamento entre as duas memórias", explica o performer, com idade para ter juízo. "Tenho 45 anos e não tenho idade para ser um jogador de futebol. É violento fazer todos aqueles movimentos, os protestos, os remates, o centro para o Juary... Mas por outro lado jogo com o Futre e com outros jogadores extraordinários".

Quando o Ípsilon falou com ele, Furlan estava em plena metamorfose. "Sei o jogo de cor. Conheço-o. Vi-o todos os dias nestes três meses que reservei para me preparar fisicamente". E tenta estar em forma "para não morrer em campo", porque desta vez "o palco é demasiado grande" para um quarentão - que já foi Boniek (no "remake" do Polónia-Bélgica, de 1982) e Michel Platini, como nesta foto (no França-Alemanha desse ano).

O falso Madjer

O jogo desta noite é o FC Porto-Bayern de 1987 segundo o guião de Madjer. "No campo ele enerva-se, fala com os colegas para os motivar, é muito expressivo". "Spoiler alert": "E deu o nome a um golo: É um Madjer! É incrível dar o nome a um golo".

A performance do Dragão "tem muito de real, de burlesco e de patético até". Furlan/número 8" é "precisamente o contrário" daquilo que Douglas Gordon e Philippe Parreno fizeram com "Zidane" (apontaram-lhe dezenas de câmaras xpto durante um jogo do campeonato espanhol e fizeram do francês uma obra de arte). "Sou o contrário desse filme. Preencho o estádio com a imaginação. Não sou o Madjer, sou o falso. Mas corro e sofro". O Dragão será um laboratório: "Como representar uma memória e dar-lhe forma? E como dar aos espectadores algo?" Espectadores é como quem diz. "Às tantas as pessoas já não são espectadores de uma performance. Vestem a pele do adepto porque conhecem os códigos, os cânticos. É impressionante. Jogam o jogo. Só há actores".

Trinta e tal anos depois de ter disputado sozinho o Campeonato do Mundo aos saltos na cama, Furlan detesta "aquilo em que se transformou o futebol". Adora a selecção italiana, mas o futebol é "um produto demasiado comercial". "É difícil encontrar a paixão lá no meio. Não gosto, mas quando o jogo começa surge a emoção da infância. As pessoas guardam essa paixão toda a vida, mesmo conhecendo a horrível transformação do futebol".

No limite, resta ele, Madjer. "Estava de costas para a baliza e Deus estava do meu lado". Que Deus esteja do lado de Furlan. Madjer, o verdadeiro, vai estar: voou expressamente da Argélia para se ver ao espelho a marcar um golo. Com o calcanhar de Massimo Furlan.

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