Crónica de um desaparecimento

Este cineasta gosta dos que desaparecem. (Seria uma injustiça com nada de poético se ele fosse um desaparecido no cinema português.) Por exemplo, em "Águas Mil" (IndieLisboa 2009), longa-metragem que continua inédita nas salas, um filho mexia no (seu) passado, fazendo o percurso do pai desaparecido, membro de uma organização armada nos anos quentes do pós-25 de Abril, e era uma forma de Ivo Ferreira, 35 anos, fazer sua uma vivência alheia, da geração dos pais, mas que constitui seu património afectivo. Isto é dizer que era uma forma de um cineasta abraçar com o coração - é filme de uma generosidade que comove - o político e o privado, o íntimo e o histórico (como um autoretrato através dos outros) quase a contracorrente do que se faz em Portugal. E é isto que interessa, fundamentalmente: aquilo que só é igual a si próprio...

Esta semana atiram-nos para o colo dois filmes de Ivo Ferreira, um documentário e uma curta-metragem de ficção rodados no outro lado do mundo, na China: "Vai com o Vento" (2009), ou a história de chineses (de uma cidade rural na província de Zhejiang) que partem à procura de vida melhor no Ocidente; "O Estrangeiro" (2010), em que alguém procura em Macau um amigo que ali viveu 15 anos antes, tentando reconstruir um percurso graças às cartas que esse amigo lhe enviou.

China, emigração, os saltos económicos em frente... podemos pensar, por exemplo, na forma como Jia Zhang-ke, cineasta chinês, documenta as transformações do seu país, esse silêncio, esse quase espanto perante algo próximo da mutação, algo olhado como trauma... Mas não é nada disso "Vai com o Vento", até porque é o olhar de um estrangeiro. Não é nada disso porque é, fundamentalmente, o filme de uma empatia pelos que partem. Nem é já um filme sobre a China. É um filme sobre alguém (um cineasta) que abraça essa experiência de desaparecer no mundo. Nem é a economia, é a vertigem pessoal.

Algo que tem a sua versão quase paroxística na curta "O Estrangeiro", em que alguém procura um amigo desaparecido. Esse "alguém" - vislumbrado quase sempre em silhueta ou então sendo pressentido fora de campo - é "interpretado" pelo próprio realizador. É dessa forma que "personagem" e "actor" de "O Estrangeiro" se confundem e se entregam ao desaparecimento: é que quem procura aqui também está a desaparecer, como se fosse o próprio desenrolar do filme a apagar os traços da sua existência - desde logo tornando indistinto o que é documento e o que é (auto)ficção.

É envolvente com um sussurro. Vamos perder-nos nele.

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