Está o livro morto?

Não há volta a dar: o futuro é digital. Editores e bibliotecários estão a viver num limbo, entre o passado analógico e o futuro electrónico. E como ainda ninguém resolveu o problema da preservação dos textos em formato digital, há riscos. Como será daqui a 20 anos?

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“Já tivemos a morte do livro, a morte dos autores e, agora, a morte das bibliotecas: então eu não acredito na morte. A verdade é essa!”, diz com o seu apurado sentido de humor o historiador norte-americano Robert Darnton, director da Biblioteca da Universidade de Harvard desde 2007.

Na última edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), no Brasil, o livro e o seu futuro estiveram em destaque. Além de Robert Darnton, discutiram este assunto o historiador Peter Burke e John Makinson, o CEO do grupo editorial Penguin. “Professor Darnton, o livro tal qual o conhecemos hoje é um objecto em extinção?”, pergunta a jornalista e escritora brasileira Cristiane Costa. “Não é a primeira vez que me fazem essa pergunta...”, responde o autor de “The Case for Books: Past, Present and Future” (com tradução na editora brasileira Companhia das Letras, “A Questão dos Livros: Passado, Presente e Futuro").

“A pergunta costuma ser seguida da questão: ‘Está o livro morto?’ Isso lembra-me sempre um dos meus grafitos preferidos na casa de banho dos homens na Biblioteca da Universidade de Princeton. Alguém escreveu na parede: ‘Deus está morto’, assinado Nietzsche. E alguém escreveu a seguir: ‘Nietzsche está morto’, assinado Deus. Não penso que o livro esteja morto. Foi declarado morto tantas vezes que só pode estar vivo.”

Este historiador, especialista na história do livro, tem coleccionado estatísticas. Sabe que cada ano são publicados mais livros impressos do que no ano anterior (há uma excepção: 2009, ano desastroso em todo o lado). “Mais um milhão de novos livros serão publicados este ano em todo o mundo. É absurdo declarar que o livro está morto! Se olharmos para a história do livro e da comunicação, uma das lições a tirar é que um ‘media’ não substitui os outros”, diz. A rádio não matou os jornais, a televisão não matou a rádio, o cinema ainda continua forte apesar de termos a Internet. Claro que é importante reforçar que o futuro será digital, acredita, mas isso não significa que o livro impresso esteja morto. Acha que vamos passar por um período de transição e que teremos que inventar novas formas em que o livro digital e o livro analógico se completam. Para Robert Darnton, esse vai ser o futuro dos próximos 20 anos: “Depois disso, quem sabe?”

Houve outra pergunta que foi insistentemente feita ao director da Biblioteca Universitária de Harvard - que esteve envolvido durante anos na negociação com o Google sobre o projecto de digitalização do acervo da biblioteca - desde que ele chegou ao Brasil. A académica Lilia Schwarcz, que moderou um dos debates, voltou a fazê-la. “Toda a gente me pergunta se eu uso um Kindle!”, exclama o historiador que fica embaraçado porque não lê livros em máquinas. “Provavelmente devia fazê-lo, não tenho nada contra. Mas adoro papel e livros antigos. Sinto-me confortável. Gosto de andar para a frente e para trás e acho que o códex é uma das melhores invenções de todos os tempos.”

Robert Darnton não lê livros no Kindle nem no iPad, mas respeita quem os lê. Acredita que as máquinas que servem para ler livros vão melhorar e que todos vamos usá-las para certos propósitos. “Apesar de eu estar ligado ao livro impresso, só posso dizer que o futuro é digital”, afirma.

Por sua vez, o historiador Peter Burke, professor emérito da Universidade de Cambridge especialista em Idade Moderna europeia, está “semioptimista ou semipessimista” quanto ao futuro do livro impresso e digital. Não é um verdadeiro pessimista porque não acredita na morte do livro impresso nas próximas décadas, mas acha que a importância do livro em relação a outras formas de comunicar vai ficar diminuída. “Os livros que sobreviverem terão tendência a ser mais pequenos, mais fáceis de ler com o Kindle ou com outros dispositivos como o iPad. Estou preocupado com o futuro de clássicos, como ‘Guerra e Paz’, de Tolstoi. Não vejo as pessoas a pegar num Kindle para ler um livro com mil páginas...”

Lembra que as formas de leitura estão a mudar. No início do mundo moderno as pessoas podiam ler em velocidades diferentes consoante os propósitos. “A geração de crianças que hoje aprende a ler no ecrã será muito boa a ler rapidamente um texto e a saltar de um tema para outro, tal como a nossa geração fez e ainda o faz quando lê o jornal, saltando de um título de uma página para outro. A nossa geração sabe como ler lentamente. Tenho medo que as gerações futuras percam essa capacidade para ler devagar. Se isso se perder, a leitura lenta, será uma pena, pois, tal como a cozinha lenta, é muito importante para a civilização”, acrescenta Peter Burke.

Futuro empolgante

Robert Darnton está prestes a publicar um livro escrito em francês, que estará disponível “on-line” e terá sons. É uma investigação histórica sobre a forma como as canções de rua funcionavam em Paris, no século XVIII, como os jornais de hoje, e até derrubavam governos: uma explicação sobre como a comunicação oral era importante na mobilização da opinião pública. Por isso, o leitor do livro deste historiador vai poder ler o texto mas também ouvir as tais músicas. “Podemos ouvir a história, captar os sons da história de uma maneira que seria impensável antes da revolução digital. Do ponto de vista dos autores e académicos, o futuro da edição vai ser empolgante”, acredita.

O papão dos editores em relação ao digital tem sido aquilo que se viu acontecer na indústria musical por causa da pirataria, mas John Makinson, da tradicional editora britânica que ficou famosa por vender clássicos em livros de bolso que custavam o mesmo que um maço de tabaco, considera que há uma grande diferença entre o que se passou com a indústria musical (que viu as suas vendas caírem) e o que se passa na indústria livreira. Mackinson acredita que os consumidores não querem comprar álbuns inteiros, querem comprar determinadas faixas de músicas, e foi isso que Steve Jobs percebeu. Ao que se sabe, os leitores querem comprar livros inteiros e não determinado capítulo. Existe uma diferença de atitude também em relação à forma como coleccionamos música e livros. “Não é ‘cool’ ter 35 mil ‘e-books’ no nosso iPad, mas é ‘cool’ ter esse número de músicas no nosso iPod. Para já, a pirataria de livros digitais ainda não comprometeu a indústria editorial e penso que isso não vai acontecer nos próximos tempos.”

Este ex-jornalista, licenciado em História e Inglês pela Universidade de Cambridge, considera que as potencialidades digitais são um desafio para os editores. No futuro, o papel do editor vai sair reforçado de diversas formas, mas precisam de saber ouvir os consumidores para os ajudarem a aumentar a experiência de leitura. “Claro que ainda terão que se desenvolver as ferramentas”, diz, mas ao criar-se um livro para ser lido com um aplicativo no iPad pode juntar-se-lhe um vídeo ou outro qualquer elemento multimédia. “Pode fazer-se com que o consumidor pague mais dois dólares do que pagaria se o livro só tivesse texto”, explica.

Os editores vão ter que ser mais experimentais em termos de conteúdo e há a forte possibilidade de no futuro os guias de viagens e os livros de referência virem a ser vendidos segmentados ou por subscrição. É certo que a venda de livros físicos vai diminuir e que as livrarias vão ter que melhorar o seu serviço de atendimento aos leitores (só assim conseguirão manter clientes). As livrarias independentes, que tradicionalmente conhecem melhor os seus clientes, serão aquelas que estarão mais preparadas para responder à pergunta que lhes vai interessar: “Qual o livro que devemos ler a seguir?” Vamos à livraria pagar mais caro para ter um serviço personalizado tal como hoje vamos a uma loja Gourmet e pagamos mais por um queijo do que pagaríamos num qualquer supermercado, mas sabemos que aquele queijo é melhor, explica o CEO da Penguin. 

Pesadelo e o que fica obsoleto

Por saber que o futuro é digital, o director da Biblioteca da Universidade de Harvard tem pesadelos. Livros impressos com 500 anos podem ser lidos ainda hoje, mas as tecnologias (os sistemas de programação de dados, de digitalização e de leitura) tornam-se obsoletas com o passar do tempo, em média duram dez anos. O acesso a toda a informação digitalizada poderá vir a ser impossível no futuro, ou, para que isso não aconteça, vamos ter que pagar a quem detém os direitos do “software” e poderemos ficar dependentes da sobrevivência das empresas que o fabricam. Veja-se o que aconteceu quando se acreditou que o microfilme era um substituto adequado para o papel e, para pouparem espaço bibliotecário, livraram-se de colecções inteiras de jornais e revistas, confiando na microfilmagem.

“O pesadelo é o desaparecimento dos livros digitais, porque a maioria dos textos que escrevemos hoje nasceram já digitais. Vivemos num mundo em que a digitalização é dominante, mas ainda ninguém resolveu o problema tecnológico da preservação dos textos em formato digital. O ‘software’ torna-se obsoleto, o ‘hardware’ fica obsoleto.”

Robert Darnton acompanhou de perto as negociações do Google para a digitalização dos acervos das bibliotecas de todo o mundo. Quando lhe perguntam se podemos sonhar com uma grande biblioteca universal num futuro próximo e quais são os riscos de ela estar nas mãos de uma empresa privada, faz um aviso prévio: admira o Google, considera que estão a inventar novas maneiras de processar informação e de a cruzar, mas vê-o também como um grande risco.

O Google já digitalizou cerca de 2 milhões de livros em domínio público, que estão disponíveis gratuitamente. “O Google recebe lucros através de publicidade, mas fá-lo discretamente. O que me preocupa é a comercialização daquilo a que eu chamaria o nosso património cultural. No caso de Harvard, temos cerca de 40 milhões de livros, é uma biblioteca gigantesca, e o Google vem ter connosco e diz: ‘Nós digitalizamos a vossa biblioteca de graça, mas, em troca, queremos vender as cópias digitais.’ Acho que isto é inaceitável, digitalizarem os nossos livros abrangidos por direitos de autor e depois cobrarem-nos para lermos esses livros em formato digital, numa base de dados, ao lado de outros livros digitalizados de outras bibliotecas excelentes.”

Robert, que passou parte considerável dos seus dois primeiros anos em Harvard a lidar com advogados e a esforçar-se por compreender as implicações do acordo com o Google, acredita que a empresa está a criar o maior monopólio que alguma vez existiu e que se trata de um monopólio de um novo tipo: de acesso à informação.

Não se importaria se o Google digitalizasse estes livros e os colocasse à disposição das pessoas gratuitamente, com alguma publicidade ao lado. Isso seria diferente. “Não considero que devamos comercializar aquilo que as grandes bibliotecas construíram - no nosso caso desde 1638 - e colocá-lo nas mãos de uma companhia cujo principal objectivo é apresentar lucros aos seus accionistas”, alerta. A solução seria criar-se uma Biblioteca Digital Nacional com a ajuda de patrocínios de fundações dos EUA e fazer com que esses livros estivessem disponíveis para todos os cidadãos, não só dos EUA. Como se fosse aquilo a que os iluministas chamavam a República das Letras, o ideal do século XVIII, uma biblioteca igualitária para todos. “Para isso ir para a frente é necessário mudar as leis de direito de autor, arranjar os fundos, ter autorização das livrarias. Não é fácil, mas seria uma alternativa a uma empresa monopolista e comercial que está a produzir a nova biblioteca de Alexandria, que devia ser criada por nós mesmos”, diz Darnton, que, durante uma visita que fez aos escritórios do Google na Califórnia, ficou impressionado com a resposta que recebeu quando perguntou a alguém para lhe descrever a hierarquia de status da empresa. “É fácil”, disseram-lhe. “Em primeiro lugar estão os engenheiros informáticos, depois os advogados e por fim os cozinheiros.”

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