O cerco de João Tordo

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O vencedor do Prémio José Saramago 2009 falou com o Ípsilon sobre o seu novo romance, "O Bom Inverno", uma espiral descendente em direcção ao inferno numa casa perdida num bosque em Itália. Não há saída, diz o escritor, nem mesmo para a literatura: aqui toda a gente se vai odiar e trair até não haver ninguém, nem mesmo um narrador, a sobreviver para contar

1. E depois do prémio

"O Bom Inverno" é o quarto romance de João Tordo, 35 anos, e o primeiro após o Prémio José Saramago, que venceu em 2009, com "As Três Vidas".

Se ganhas um prémio, há um bocadinho aquela tendência para que o próximo livro seja uma coisa semelhante, que estejas à altura do romance anterior. Eu quis fazer precisamente o contrário, ou seja, uma coisa que não tivesse nada a ver, com excepção do facto de haver algumas personagens que saltam do romance anterior para este. Mas isso é uma coisa que faço em todos os livros.

Dito isto, os livros de João Tordo podem ser lidos independentemente uns dos outros, não são sequelas. As personagens vêm do seu "mundo ficcional"  - já vamos falar dele. Antes, é preciso dizer que "O Bom Inverno" é a história de um escritor frustrado e hipocondríaco que relutantemente aceita um convite para participar num encontro literário em Budapeste, onde conhece um escritor italiano, Vicenzo, que o convence a ir até Sabaudia, em Itália, à casa do famoso produtor de cinema Don Metzger. Até que Metzger é encontrado morto no seu próprio lago.

2. Profissão: escritor

No princípio de "O Bom Inverno", há um escritor que "já vivia do subsídio de desemprego havia seis meses". Que, embora sendo escritor, "não acreditava na literatura". E que assim entrou "numa espécie de marasmo criativo e sentimental", lê-se no livro.

Este narrador representa aquilo de que todos os escritores têm medo, aquela situação em que, quando se é escritor, quando se pensa que é escritor, quando se escreve com o puro intuito de se escrever, quando se escreve para almejar outra coisa que não seja a escrita, ou seja, o sucesso, facilmente acontece o que aconteceu com este narrador. Ele claramente não gosta da pessoa que é, não gosta de ser escritor, e não gosta de escritores. Chama-lhes cobardes e mentirosos; serve como denúncia da pessoa que se quer fazer passar por isto: ser escritor.

Este escritor tornou-se um "assaltante profissional" e, além de escrever romances, foi "jornalista, revisor, tradutor, criativo numa agência de publicidade, escrev[eu] prefácios e posfácios de livros, discursos de político de segunda", entre outras coisas que um escritor profissional tem de fazer para viver da escrita e não ter uma profissão paralela. João Tordo "ainda não é" um escritor profissional, ainda não vive da escrita. Noutro país, não seria assim.

Noutro país com outra dimensão, como a Inglaterra ou os Estados Unidos, com quatro romances já estaria a viver da escrita. [Em Portugal], com 10 milhões de pessoas, evidentemente isso não acontece. Há escritores que têm a minha idade ou pouco mais e, de facto, já vivem da escrita. Mas muitos fazem-no profissionalmente de uma maneira que não quero fazer. Há uma profissão de escritor que é ir a todas as conferências, a todos os debates, aceitar todos os convites que lhe são feitos. É um género de viver da escrita para o qual não tenho disponibilidade mental: passar o ano a viajar, em Portugal ou para fora, passar o ano no aeroporto, a falar de mim próprio em debates e conferências... Confesso que não é a minha onda. Por isso, faço tradução, pouco guionismo, e quero manter uma regularidade de publicação de livros, de 18 em 18 meses. Até ao ponto em que tenha livros suficientes no mercado para viver dos direitos.

3. O livro é um lugar honesto

O narrador de "O Bom Inverno" não passa a vida em conferências, mas promete escrever o livro que o vingará do mundo e do ostracismo a que este o votou. É "cínico, sarcástico e um frustrado que passa o dia fechado em casa". Está a um passo de sair da realidade, diz Tordo, sobretudo quando sofre um acidente e se magoa na perna. Ciente de que irá coxear para o resto dos seus dias (apesar de as radiografias e os médicos lhe dizerem que não há nada de errado com a perna), compra uma bengala Rosewood, em mogno castanho. E se antes este narrador era um "pessimista, depois de comprar a bengala pass[ou] a ser um cínico": uma espécie de Dr. House dos livros.

Ele julga que pode apropriar-se de novo do mundo, da realidade, escrevendo uma obra magnífica, que o fará vingar-se. A partir do momento em que usas a escrita para te vingares do mundo, acontece-te isto. Chegas ao ponto em que não escreves mas falas sobre escrever. A procrastinação de que falo ao longo do livro aconteceu com muitas pessoas que almejavam tornar-se escritores, que falam sobre isso mas não escrevem nada. Os livros não servem para nos vingarmos do mundo, muito menos para sermos famosos ou para ganharmos fortunas.

Complementando a sua própria opinião, o autor escreve no livro: "Como quase sempre acontece a quem toma este género de decisões, escrevi muito pouco mas bebi imenso enquanto falava de páginas que só existiam na minha imaginação."

Para Tordo, um livro tem de partir de um lugar honesto porque os leitores percebem se um escritor está a escrever para si próprio, para o seu ego, se acredita no que escreve ou se tem outros propósitos. O leitor sabe. E esse lugar honesto não tem nada de místico.

Não quer dizer que quando se escreve se tenha de estar num lugar puro da alma. Não acredito nada nessas coisas, sou um escritor muito anglo-saxónico, dou primazia à narrativa, às personagens, aos diálogos e à história que está a ser contada. Para mim, escrita é puro trabalho, puro ofício. Estar ali, todos os dias, horas e horas, até as coisas saírem bem.

Quando um livro não parte desse lugar honesto, é aí que um escritor se pode transformar num cobarde e num mentiroso.

É quando te começas a levar muito a sério, quando não tens pingo de auto-ironia, de te olhares ao espelho e de te rires um bocadinho do que és e do que fazes. Isto tem o seu lado cómico: é inusitado pensar que pões palavras nas páginas e que as pessoas pagam para as ler. Quando pensas nisso a sério, parece um pouco extravagante. Claro que tem o seu valor, mas não podemos deixar-nos levar pela sensação de que somos mais importantes do que os outros.

E João Tordo não tem medo que isso lhe aconteça: "Tenho uma auto-ironia fortíssima, sou muito crítico de mim próprio e tenho sentido de humor acerca disto. Levo os meus livros a sério, mas não me levo a mim muito a sério."

Se no princípio de "O Bom Inverno" há um narrador frustrado, que já não acredita nos livros e acha que se vai vingar do mundo, no final, pelo contrário, ele é obrigado a "imaginar pelas suas próprias palavras o fim daquela história". Há a viagem física de Lisboa para Budapeste para Sabaudia para um balão dali para fora; há a viagem para um reencontro com esse lugar honesto do escritor. "Uma viagem de alguém que não acredita no poder das palavras e no fim é obrigado a usá-lo para viver. Foi essa a metáfora que, não intencionalmente, quis pôr neste romance."

4. O mundo tordiano

"O Bom Inverno" é um "estudo de personagens", diz João Tordo. Isso aconteceu porque só parte da estrutura estava conjecturada - a voz do narrador, as personagens principais (e, por acaso, algumas são pessoas que existem, de facto), o enredo até à chegada a Sabaudia. A partir daí, tanto o escritor como o seu protagonista e as suas dezenas de personagens embarcam naquela aventura que terá consequências trágicas - pelo menos, para alguns. À partida, o escritor não sabia quase nada sobre o seu livro.

Só sabia que, às tantas, ia ter 12 ou 13 personagens naquela experiência de cerco, ia conduzi-las àquela situação limite, em que estão enclausuradas naquela casa, naquele bosque. Algumas [personagens] são mais superficiais, outras mais profundas; algumas mais engraçadas, outras mais trágicas. Mas são todas personagens a quem que eu quis ver o que acontecia. Também foi uma aventura para mim, porque não fazia ideia do que lhes ia acontecer.

João Tordo esticou a corda das suas personagens até ao limite. Ao ponto de recorrer uma vez mais ao seu "mundo ficcional" e buscar Nina Milhouse Pascal, que em "As Três Vidas" era uma criança e em "O Bom Inverno" tem pouco mais de 40 anos. Explica Tordo que, uma vez "tendo este mundo ficcional à disposição, é muito difícil não o usar". Nina já estava "a viver" com Tordo há alguns anos (este "mundo ficcional" são pessoas que vão vivendo com o autor). Mas, se calhar, ela começou a ocupar muito espaço: já tinha entrado em três romances. "Neste entrou quase que involuntariamente da minha parte: estava a escrever o livro e não sabia que ela ia entrar e, de repente, era óbvio que ela tinha de estar ali. Já estava na altura de lhe fazer uma espécie de elegia".

O "mundo ficcional" tordiano funciona assim. Não é Tordo que recorre a esse mundo: "Ele é que me recorre a mim". As personagens estão lá numa espécie de limbo até Tordo começar um livro e, de repente, aparecem. Para o autor, "é óbvio" que eram elas que tinham de estar ali. Talvez por isso saltem de uns livros para os outros. Talvez por isso, então, Tordo escreva no final do livro: "Nunca mais tornei a ver Elsa Gorski [uma personagem da casa de Sabaudia]. Embora tenha a certeza de que, um dia destes, nos voltaremos a encontrar."

Desde que comecei isto, não quis escrever só livros. Quis construir um mundo ficcional no qual me sentisse completamente à vontade e no qual as personagens fossem muito reais para mim. E que fossem tão reais [ao ponto de], neste romance, ainda que pareça um cliché ou uma mistificação, elas fazerem coisas de que não estava à espera. [...] Não sei de onde vêm certas ideias ou certas opções que as personagens às vezes tomam. São ideias que me surgem, não sei de onde me surgem, mas tem a ver com a criação desse mundo ficcional, desde o primeiro romance. No começo podia ser um mundo ficcional frágil, mas, com o passar do tempo e dos livros, vai-se tornando mais sólido.

5. Da natureza do mal

No novo romance de João Tordo há mais do que um crime. No início, um narrador (o tal Dr. House dos livros) de mal com o mundo vai a Budapeste e aí encontra Vicenzo, um escritor italiano, acompanhado da sua agente, Nina, e da sua namorada, Olivia. Vincenzo é jovem, louco e audaz e convence o narrador a "arrastar" a sua bengala de Budapeste para passar o "bom Inverno" na espectacular casa do produtor de cinema Don Metzger em Sabaudia, no Lácio italiano.

Na casa de Metzger encontram Bosco, um artista catalão que constrói balões e depois os faz voar (criatura gigantesca, careca e de quem todos parecem ter medo), com o seu assistente Alipio, e a sua mulher cozinheira; e também encontram Roger, um realizador de filmes porno, Stella, a sua mulher e actriz-musa, e os actores da rodagem de um filme. Entre eles está Elsa Gorski: ela mesma, a famosa actriz "em quem era difícil não reparar". Quando Metzger é encontrado morto, Bosco toma conta da situação e cerca todas as personagens até elas confessarem quem cometeu o odioso crime. Outros crimes serão cometidos até a verdade ser encontrada - se é que a verdade existe.

Ao contrário dos balões que se elevam no ar dando conta da leveza efémera da obra de arte, "O Bom Inverno" é uma espiral descendente em direcção ao inferno de um cerco, de uma clausura numa casa perdida na clareira de um bosque. Não há saída. O mal confunde-se com a justiça, a verdade com a mentira. Aquelas personagens vão odiar-se, trair-se e denunciar-se até não restar ninguém para contar a história.

São todos culpados. Não se sabe quem mata o Don Metzger porque é uma solução que não me interessa. Isso seria escrever um policial e eu não escrevo policiais, até porque um policial tinha de ter polícias e aqui não os há. Interessa-me que estes elementos do policial e do mistério sejam integrados numa ficção que não tenha necessariamente esses rótulos. Nesse sentido, aquele crime serve apenas para despoletar a história.

Assim enclausuradas entre quartos e corredores, no meio da clareira no bosque, estas personagens que à partida pareciam seguras tornam-se frágeis, expostas ao horror da luta pela sobrevivência. Do que o leitor não estava à espera era que o narrador inicial (hipocondríaco, lembram-se?) se tornasse agora no elemento mais forte da narrativa. É essa a ironia da ficção: um tipo débil no mundo real, atirado para dentro de um livro, torna-se um herói. Estas são as personagens preferidas de Tordo.

Personagens imensamente falhadas que nesta vida, a que chamamos real, seriam despedidas, acossadas, presas, humilhadas, desprezadas, e que em ficção são as que mais gostamos de ver. Apesar das suas falhas iniciais e dos defeitos que têm, continuam a ser fascinantes. Um tipo pode ser pérfido e cruel e ser fascinante à mesma.

Como o Dr. House, por exemplo, ou o Sherlock Holmes (outro exemplo, de Tordo). Depois, estes "loosers", falhados, são jogados para dentro do texto e, num ambiente escuro, gótico, opressor, de calafrio, que vem das influências do escritor (Poe, escritores vitorianos do século XIX, Dostoiévski, Kafka, Kurt Hanson), tornam-se capazes de fazer o mal pelo bem. É esta a natureza do mal?

Não são impulsionadas pela maldade, mas estão obcecadas com um certo objectivo. Não sei dizer o que é o mal, mas acho que nos meus livros há sempre personagens que não são exactamente más, mas também não são exactamente boas. [...] Não gosto de personagens que sejam más por natureza, porque isso torna-as unidimensionais. O Bosco é tudo menos isso: ao mesmo tempo que pode ser um assassino, também é um filósofo de pacotilha. [...] Não acho que qualquer destas personagens faça o mal pelo mal. Acho que têm caminhos muito definidos e fazem-no por uma questão de sobrevivência. É uma amoralidade completa do mal.

As personagens estão neste círculo vicioso, sem saída. E não há ninguém que as julgue, explica Tordo. Nem polícia, nem deus.

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